segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

OS BICHOS DA TIA GLÁUCIA



Pois a  tia Gláucia, que era irmã do meu avô, portanto, minha tia avó, tinha mais de 120 cachorros quando morreu,  com noventa e picos de idade. Cachorros dos grandes, dos médios e dos pequenos, dos de raça, puro sangue, e dos raçudos que ela chamava de “tombas”. Lata. É claro!
O casarão, em Camaquã, onde ela morava sozinha, se é que alguém pode estar só com tanto cachorro, era o paraíso para qualquer cusco sarnoso, descadeirado ou mordido de cobra. O bicho podia chegar com as costelas alumiando, com mais pulgas do que pelos, que em menos de duas semanas já estava parecendo cachorro de grã-fino, engordando, cheiroso e escovado. Depois era fácil arrumar colocação em alguma casa ou numa fazenda. Uns paulistas que andavam comprando arroz em Camaquã levaram uns filhotes de perdigueiro para as crianças, e teve até um casal de israelenses sem filhos que adotaram um pequinês da tia Gláucia.
No dia da vacina antirrábica a prefeitura punha um posto no casarão, e geralmente era o que vacinava mais. No inverno o serviço dobrava, pois muito animal velho alcançava mais uma primavera graças ao assistencialismo do casarão. A tia senhora contava com a ajuda decidida de uma governanta, polaca, cega de um olho, mas excelente cozinheira, que fazia as delícias da cachorrada. Tinha também uma faxineira tenaz que perseguia as pulgas e pelos extraviados e banhava a matilha num banheiro adaptado, com água quente, xampus, escovas e secadores.
A tia Gláucia supervisionava tudo com a eficiência de uma chefe de enfermagem. Mas era mais do que enfermeira, pois veterinário nunca tirou farinha com ela. Até cirurgia a tia fazia e dizia com orgulho, que desde os 65, quando se especializou em cães, até os 86 anos, quando teve glaucoma, nunca perdeu um paciente. Daí por diante, com a vista deficiente, os casos cirúrgicos eram encaminhados a uma sobrinha neta, que por acaso é minha irmã, e “doutora de cachorrinho”.
Já não me lembro se foi em 1974 ou 75 que li no Jornal do Brasil, uma daquelas notícias curiosas, de uma senhora que queria legar a pensão da Guerra do Paraguai, que recebia por ser filha solteira de combatente, aos cães, com a alegação de que eram seus filhos adotivos. Não precisei nem ler tudo para perceber que se tratava da minha tia, dando um toque de humor à sisuda jurisprudência brasileira.
Mas se a tia Gláucia foi sempre bem humorada e amante de bichos, nem sempre se dedicou aos cães. Aliás, até 1950, os cães eram enxotados do casarão que vivia infestado era de gatos.
A brusca mudança de gato pra cachorro, para cachorro pra caramba se deu por causa de uma afilhada a quem faltaram os pais.
Como boa católica, a tia Gláucia cumpriu com o seu dever de madrinha e convidou a menina que já beirava os dezessete,  para morar no casarão -ia ser bom, ela precisava de companhia, gostavam uma da outra, e de fato ia tudo muito bem até que a moça começou a namorar.
O namoro era em casa como aconselhava o decoro, mas o rapaz, não é que tivesse horror a bichos - era alérgico! No começo ainda tentou segurar os espirros, esfregar o nariz... Ora, os gatos viviam pela casa toda, mas é claro, tinham preferência pela sala com seus sofás e poltronas, almofadas macias e uns pelegos grossos como tapetes no chão. O moço não ficou nem cinco minutos e já arrumou uma desculpa e saiu espirrando tanto que chegava a abanar o arvoredo.
A senhora que tinha reparado os olhares de nojo que o pobre rapaz lançara aos bichanos, ainda comentou com a afilhada que um bom pai se podia conhecer pelo tratamento que dispensava aos bichinhos. E a menina, que era muito grata e estimava muito a dinda, não quis contradizê-la. Sabia que aqueles gatos eram umas tetéias e a madrinha ficaria magoada se ela falasse qualquer coisa. Quem sabe, um dia ela conheceria um bom moço que gostasse muito de gatos...
Pois foi aí que a tia Gláucia recebeu uma carta de uns parentes de Santa Vitória do Palmar que há muito insistiam  que ela os visitasse. A dinda até que fazia gosto pela viagem, mas se prendia pela criação. A afilhada então protestou:
- Imagine, pra ela serviria então? Que a dindinha fosse sossegada, os bichanos seriam muito bem tratados.
E diante de tanta devoção aos gatos, já demonstrada pela afilhada, a tia Gláucia se tranquilizou, e depois de uma semana de preparativos, de instruções, recomendações e cuidados, partiu para o veraneio em Santa Vitória.
A moça tratou de aproveitar a oportunidade, e como cachola não lhe faltava, logo arquitetou um plano que, esperava, iria convencer a madrinha a se livrar dos gatos, sem magoá-la.
Pra começar procurou nas suas coisas um rebenque que guardava como lembrança do pai, que tinha pilchas de campeiro e trançava couro como ninguém. Pois o tal rebenque do tipo rabo-de-tatu mais do que uma peça era uma obra de arte e uma arma, com três tiras de couro cru terminando com umas pelotinhas nas pontas, um argolão de prata pura no cabo e uma presilha pra pendurar no pulso. Qualquer carroceiro sabe que com um rabo-de-tatu bem aplicado até cavalo morto dispara.
Pois a menina armada com tal açoite chegou à sala, onde os felinos se refestelavam,  rezou  - Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo  - e sentou relhada pra todo lado. Os gatos perderam o rumo e zuniram pra fora soltando fogo pelo rabo. Teve um que passou por uma vidraça fechada que nem uma pedra. Outro se embrenhou numa roseira espinhosa. Os mais pequenos subiram pelas cortinas até  o teto. Enquanto havia um gato dentro de casa o couro comeu solto, acompanhado sempre do “Pai, Filho e Espírito Santo”.
Pois não é que a ladina domou os gatos? Quando a tia Gláucia voltou, dois meses mais tarde, os bichanos correram todos para a sua protetora, que foi entrando no portão, distribuindo afagos e umas iscas de fígado que tinha trazido de agrado. Foi uma festa. A tia chamava todos pelos nomes e os bichinhos miavam em volta dela, a se esfregar nas pernas, cheios de saudades. Mas,  quando entrou na sala, os bichanos, ressabiados, ficaram de fora. Não ousaram! A tia notou e achou esquisito, mas foi entrando, vendo a casa bem limpinha, tudo arrumado com capricho de moça prendada. A afilhada tinha enchido os vasos de flores e estava na cozinha com muitos doces e pão fresquinho a sua espera.
E entre os “como vai”, "como foi” e “como estão”, a dona Gláucia foi logo perguntando sobre os gatos, que estavam lá fora, numa espécie de galinheiro que na verdade, era a morada que a afilhada tinha providenciado. A guria fez uma cara séria, e com gravidade, fez a madrinha perceber que havia uma coisa muito errada com os gatos.
A dona, saudosa,  insistia com os bichanos que a muito custo, relutando, se achegaram para ouvir o que se falava sobre eles.
Então a guria falou, fazendo uma tremenda encenação, cheia de trejeitos, que esses animais, por mais meigos que parecessem, tinham parte com o demônio, pois não podiam resistir a invocação da Santíssima Trindade.
Ah! Mas a tia riu – Mas que bobagem que tu estás me falando... Esses bichinhos?
Contudo, atendendo ao pedido da afilhada, invocou  a Trindade e ficou de boca aberta com o que viu - os gatos voaram para fora trocando as orelhas. Ainda na véspera tinham sido ensaiados a rabo-de-tatu e por isso não esperaram pra ver. Foram logo subindo nas árvores, pulando a cerca e sumiram da vista.
O resultado foi que, como católica praticante, se livrou definitivamente dos gatos, chamou o vigário que veio com a bandeira do Divino e benzeu a casa toda. A jovem espertinha reatou o namoro com o “alérgico” e logo casaram. Ambos insistiram com tia Gláucia para que fosse viver com eles em Jaguarão, onde o rapaz tinha terras, que ele era de família até bem de vida, mas a tia não aceitou - que já estava acostumada com Camaquã, com a casa e as coisas dela. Tinha uns campos arrendados e a pensão de guerra. Estava satisfeita. Abençoou os dois e foi levando a vidinha tranquila de sempre até que deu comida pr’uma cadelinha prenhe...

BORBOLETAS NO ESTÔMAGO



         Cheguei a Covent Garden com um misto de curiosidade, fascínio e reverência. Estava abastecido de informações sobre a fabulosa casa de espetáculos da Bow-Street em Londres. Construída no século XVIII, no local de um antigo convento, para se representar o drama e a tragédia, foi consagrada à ópera na época Vitoriana, na segunda metade dos anos mil e oitocentos, passando a se chamar Royal Opera House. Meu olhar foi imediatamente capturado pelas seis colunas com capitel coríntio. Que prédio formidável, pensei eu, que magníficas linhas, quanta sobriedade... Uhh!  Acho que um construtor de gaiolas de passarinho deixou suas marcas por aqui. Há quem não concorde com acréscimos de vidro e aço, mas essa parece ter sido a paixão dos arquitetos europeus no final do milênio. Todavia, não é mais a pedra o material nobre das construções, e as armações transparentes parecem dizer que estão ali para contrastar, para realçar ou mesmo emoldurar o antigo e admirável. Em Covent Garden  não construíram uma pirâmide, como no Louvre, mas alguma coisa circular, que me lembra uma rosácea ou mesmo aqueles barcos miniaturas dentro de uma garrafa, ligando a um novo prédio  de paredes lisas, em forma de cubo, com heliponto em cima.
         Adentrei reverente, afinal estava em um dos mais famosos templos, consagrado às expressões máximas das artes cênicas e da música. Dei uma alisada no terno, olhei para os sapatos, passei o bico na perna da calça para tirar uma poeirinha, senti o nó da gravata e conferi os botões do casaco. Era cedo ainda, mas entreguei o bilhete a uma jovenzinha ruiva, de uniforme, que me pediu para segui-la até meu lugar na plateia. Não a acompanhei, fui entrando devagar como um noivo, olhando tudo com admiração e pisando com cuidado no carpete macio.  Ela parou no meio e me esperou sorrindo com simpatia. Devia estar acostumada com o deslumbre de tantos turistas com a suntuosidade da sala. Quando cheguei à minha poltrona, bem lá na frente, na segunda fila, agradeci e dei uma moeda à garota, mas não me sentei. Passei a mão no veludo, segurei, e iniciei um passeio demorado com os olhos sobre a plateia, pelas frisas, pelos camarotes, pelo balcão. Dobrei o pescoço e apreciei a decoração do teto, o lustre gigantesco, as luzes cintilando nos cristais. Antes de me voltar para o palco fechei os olhos e me concentrei no cheiro do lugar. Não precisava identificar, só sentir as notas e deixar afluírem centenas de memórias que cada fragrância despertava. Reviver uma antiga experiência, fazer conexões, comparar situações, a emoção de estar vivendo um sonho. Era um festival de sensações, me despregando do lugar comum, da aridez cotidiana, da insipidez de dias menos afortunados. Sem abrir os olhos abaixei o assento e deixei o corpo se acomodar. Com o queixo mais perto do coração, esperei que passasse o arquejo provocado por um contentamento envelhecido: o “Lago dos Cisnes”, primeiro espetáculo do menino de nove anos, no teatro São Pedro de Porto Alegre. Há quanto tempo atrás eu tinha estado naquele lugar mágico que me fascinara os sentidos e provocara tão intensas emoções?
         Admirei a cortina, seus detalhes dourados, a decoração do palco, tudo lindo.  Que noite iria viver na Royal Opera House! Despertar de um sonho e ainda estar em um lugar idílico?  Foi o que pensei vendo aquele unicórnio branco do estandarte real no tecido encarnado que cobria a boca de cena.
Os músicos da orquestra tomavam seus lugares e se exercitavam com os instrumentos. A ruivinha simpática me sorriu de novo quando trouxe mais pessoas. As poltronas foram todas ocupadas. O primeiro violino da orquestra deu três batidinhas com o arco na estante chamando a atenção dos colegas e solou a nota La. Ouviu-se o som contínuo da conferência da afinação.
                  A doxologia da noite seria Madama Butterfly, de  Giacomo Puccini. Fundamentada no texto do americano David Belasco, a ópera foi representada pela primeira vez em Milão, em 1904. É a história de  Cio-Cio-Sam, uma linda garota japonesa que se casa com um oficial da marinha americana. O militar não levou a sério o casamento, considerando-o um passa-tempo enquanto servia no estrangeiro. Terminado o período de serviço retornou para os Estados Unidos abandonando-a. Anos mais tarde fica sabendo que tivera um filho com ela. Então decide ir ao Japão com sua esposa americana para buscar a criança. Cio-Cio-Sam, que sempre acreditou no amor e no retorno do marido, vê suas esperanças perdidas e, diante da desilusão e da iminente perda do filho, decide que não vale mais a pena viver.
         Fiquei deliciosamente surpreso com a encenação. Na verdade, não procurei saber nada adredemente sobre o diretor e a abordagem que faria da ópera de Puccini. Ao abrir o pano estávamos diante de um quadro do filme “Sonhos” de Akira Kurosaua, um cartão postal japonês, a tradição nipônica representada em estilo suntuoso, brilhante como um desfile na Marquês de Sapucaí.
Na primeira cena o capitão-tenente da marinha americana Pinkerton, acerta com o corretor de matrimônios Goro, a quem encomendou uma esposa, os detalhes da recepção e do aluguel de um solar, numa colina de Nagasaki. Então vem o dia do casamento e chegam os parentes da noiva Cio-Cio-San e convidados. Ao cumprimentar o noivo, o cônsul americano Sharpless percebe a frivolidade do marinheiro quando este participa que arrendou a mansão e a mulher por novecentos e noventa e nove anos, podendo desistir do contrato a qualquer tempo. Sharpless procura aconselhá-lo, mas Pinkerton desconversa falando dos Estados Unidos.
A entrada da noiva é maravilhosa. O oficial, que só a conhece nesse instante, se excita ao ver que ela tem apenas 15 anos. Os nubentes conversam e Cio-Cio-San conta a Pinkerton que sua família perdeu tudo, e que agora, casada, se considera uma mulher venturosa. A festa, porém, é interrompida por um velho sacerdote, tio de Cio-Cio-San que a recrimina porque ela renunciou as tradições e a religião de seus ancestrais tornando-se cristã. Ela é então renegada pelos parentes que vão todos embora.
No final do primeiro ato, o casal caminha pelo jardim. A despeito de tudo, a recém casada se diz muito feliz. Observando seus ricos trajes, o andar gracioso e os gestos delicados, o marido a compara a uma linda borboleta.
         Intervalo de meia hora. Ao passar pelo corredor percebi a dificuldade de um casal de octogenários e dei a mão a senhora para erguer-se e sair para o corredor. Ela e ele agradeceram muito e num instante já estavam estendendo a mão e apresentando-se. De vereda perceberam o sotaque e me identificaram como brasileiro. Fiquei mais espantando quando ela afirmou que eu devia ser gaúcho.
- Deveras! – disse eu admirado.
E num instante o vento Minuano deu uma lufada bem ali no corredor da Royal Opera House. Estava eu diante de uma conterrânea, Dona Abigail Fontes Vestey, jaguarense dos quatro costados. O marido, Mr. Gilbert Vestey, cidadão britânico, mas falando muito bem o português, e de uma simpatia calorosa, estranha aos ingleses. Bebemos uma taça de champanhe no prédio anexo, que tinha lá seu charme e utilidade. Eles concordaram rindo com a minha ideia de estar no convés de um barco dentro de uma garrafa.
Conversamos animadamente até que o sinal nos chamou para o reinício do espetáculo. Não haveria intervalo entre o segundo e terceiro atos, por isso combinamos de nos encontrar no final para mais um drink e trocarmos impressões sobre a ópera. Gostei tanto dessas pessoas! Voltei para o meu lugar confirmando comigo mesmo que era uma noite de gala.
         Segundo ato. Passaram-se três anos. A jovem Cio-Cio-San tem um bebê e está em dificuldades financeiras. Tornou-se uma mulher patética, um arremedo de americana, que se recusa a crer no abandono do marido e ralha com a sua fiel criada Suzuki que a admoesta a rezar para os deuses de seus ancestrais.
O cônsul americano Sharpless, penalizado com a situação da jovem japonesa, vai ao solar para dar notícias. Nesse instante chega também o corretor Goro trazendo nova proposta de casamento para Butterfly, uma vez que o abandono pelo marido permite que se case novamente. Ela não aceita a proposta de um rico admirador porque acredita que seu marido voltará para ela e para o filho, e serão felizes. Goro vai embora. Ao saber da criança Sharpless fica surpreso. Mesmo assim ele procura desiludir Cio-Cio-San, explicando sobre a carta que recebera dando conta de que Pinkerton casara-se nos Estados Unidos. Não adianta, ela não compreende. E ainda por cima, interpreta erroneamente, a seu favor, todas as frases que escuta, e renova as esperanças do breve retorno  do seu amado.
No último o ato se dá o desfecho da tragédia anunciada. A nova senhora Pinkerton ao saber que seu marido tem um filho decide que irá criá-lo. Viajam para o Japão, e ela mesma vai encontrar-se com Butterfly e dizer que o levarão. Finalmente desiludida, com o coração dilacerado, a infeliz repudiada concorda, mas exige que Pinkerton venha pessoalmente buscar o menino.  Quando a mulher sai, Cio-Cio-San manda preparar a criança, depois veste-se com seu mais fino traje e pinta o rosto e os lábios. Reencontrando-se com as tradições do seu povo, retira de seus guardados um punhal, herança do pai, onde lê a inscrição “Morre com honra, quando for impossível viver sem honra”.
Ao chegar o americano encontra a mãe de seu filho esvaindo-se em sangue, surpreendentemente bela.
Quando a música cessou, os espectadores permaneceram ainda em silêncio por alguns segundos, que pareceram mais longos. A suspensão inevitável diante daquilo que nos arrebata os sentidos, como o recuo do mar antes do tsunami. A ofício inebriante da música e do teatro nos confrontava com a inexorabilidade da terminação de todos os viventes. E só mesmo num palco, com grandes atores, a morte seria tão digna. De repente começaram as palmas, intensas desde o início e aumentando, na medida em que os amantes do canto lírico se punham de pé.
         A melhor maneira de amar alguma coisa é pensar que a poderíamos perder. E eu amei aquele espetáculo, porque ele foi único, porque foi exatamente daquela maneira a representação, que jamais se repetirá da mesma forma como um filme, e porque eu poderia não ter estado ali, por opção, por ausência de conhecimento, ou mesmo pela impossibilidade, por não ser onipotente e assistir a todos os espetáculos que se representaram nesse palco. Embora a história seja a mesma, e sempre possa ser encenada, apesar disso, nunca mais seria como na primeira vez no Royal Opera House.
         Depois de oito ou dez minutos de aplausos, aos intérpretes, ao coro, à orquestra, aos solistas, ao maestro, ao diretor, e flores à soprano que interpretou Cio-Cio-San, o louvor público cessou, mas não sobreveio mais o sossego, nem dentro de mim se fez calma. A obra de arte pegou na veia. Eu sabia que a música sublime de Puccini e toda aquela atmosfera do teatro, da representação e do canto lírico iria circular e alimentar meu cérebro por semanas. Comecei a perceber coisas simples como isso de estar limpo, arrumado e cheiroso – é uma coisa bem agradável – não estar ulcerado, com dor no estômago, na cabeça ou na coluna. Sentia-me muito bem, obrigado. Ninguém me dava empurrões enquanto eu saia para o corredor, ninguém me batia, nem me pegava pela orelha, pelo contrário todos sorriam e me davam passagem. Tinha sido tão bem tratado, toda a vida. Atinava para o efeito que aquilo tudo encerrava em minha existência. Continuava aprendendo sobre mim e sobre a natureza humana, de um jeito aprazível, não como uma besta de carga mourejando de sol a sol em campos de trabalho rude.
         Desde muito novo aprendi com meus parentes que há uma boa maneira de saber que pessoas vale a pena conhecer através do olhar: aqueles de olhar vivo. Lá estavam dois pares de olhos sagazes e faiscantes sorrindo para mim. Se são os olhos as janelas da alma, dentro daqueles arcabouços vincados pelos anos, estavam duas crianças. Somente elas poderiam ter avistado a minha também! Mesmo antes que eu me aproximasse, ainda por entre as pessoas que saíam, seu Gilbert já me interpelou:
         - O senhor aceitaria ir à nossa casa? A essa hora, mesmo na Cosmópolis Londrina, jovens da nossa idade não tem um bom ambiente para jantar e beber alguma coisa.
         Dona Abigail se riu enquanto eu me aproximava e disparou:
 – A não ser tomar soro no hospital. Isso a qualquer hora!
         Cocei a cabeça e fingi estar pensando.
– Prefiro a sua casa. Obrigado! E saímos os três rindo de braços dados, desfilando pelo tapete vermelho como velhos amigos.
         No vestíbulo, uma dona trajando um terninho preto, com ar competente, abriu caminho entre a multidão e veio ao nosso encontro. Era Sarah, a assistente do casal. Depois das apresentações ela falou ao celular e foi nos conduzindo até a rua.  Em instantes o motorista abriu a porta de um Bentley na nossa frente.  
- E eu imaginando se iríamos de taxi ou de metrô! Disse me acomodando ao lado de Dona Abigail.
Ela riu e respondeu:
– Os Vestey, tem mais do que precisam para viver.
 - Espere, disse eu, - os Vestey da Vestey & Brothers?
- Hãhããã, vejo que o senhor conhece a História! Disse o Seu Gilbert.
A Vestey & Brothers, de Liverpool, era uma gigante do ramo da carne congelada. Em 1921 adquiriu o Frigorífico Rio Grande, na cidade de Pelotas, que passou a se chamar Frigorífico Anglo. A companhia não teve solução de continuidade depois de quatro gerações e encerrou as atividades em 1988.
- Me perdoem se pareço alcoviteiro, mas poderiam me contar como se conheceram? Parece que temos aqui uma “Butterfly” que deu certo?
- Sim, de fato, disse Dona Abigail. Tenho pena de tantas “Butterfly” que temos neste mundo globalizado. Outro dia mesmo estávamos acompanhando pelo noticiário o caso de uma brasileira que veio estudar na Inglaterra. Aqui conheceu um rapaz iraniano e casaram-se. Ela até parou de estudar e foi trabalhar para ajudá-lo a se formar. Tiveram dois filhos. Agora ele pediu o divórcio e fugiu para o Irã levando os meninos.
- Ele quer saber da nossa História, querida, interrompeu o marido.
- Vamos contar durante o jantar. Por enquanto podemos “dissecar” a ópera, por favor?!
Que maravilha, eu estava notando aquela altivez bem humorada das pessoas de espírito. Os dois homens aquiecemos prontamente. Dona Abigail continuou.
- Eu entendo que Butterfly, deixou de lado sua tradição e sua religião para se transformar no que ela imaginava ser uma esposa americana. Nesse caso ela estaria cumprindo a tradição que manda a mulher deixar a casa dos pais e seguir o marido. Mas ela não teve nenhuma proteção quando ele abandonou-a e depois voltou só para levar-lhe o filho.
Já que era para jogar o seu Gilbert rebateu:
 - Para mim todas as religiões e culturas com seus preceitos machistas podem afundar-se nas fossas abissais que eu não dou a mínima. A pobrezinha foi vendida, seduzida e depois deixada para trás, permanecendo num exílio voluntário por causa do amor. A figura do Pinkerton é mesmo a de um canalha.
Dona Abigail aprovou, aconchegando-se ao marido. Então perguntou a minha visão do texto.
- Creio que o próprio Puccini nos autoriza a fazer transposições de tempo e espaço, uma vez que na partitura de Madama Butterfly o compositor determinou a “Atualidade” para o desenvolvimento da ação. E como no início do século XX o Imperialismo estava em seu auge, com exacerbação da superioridade da raça branca, e da sua cultura, sobre as demais do planeta, o texto, apesar do lirismo, deixa margem ao pensamento crítico, concluí.
- Nesse caso o libreto pode ser interpretado como um drama passional ou como uma história de colonização e de perda da identidade cultural, disse Seu Gilbert.
- Perfeitamente, concordei.
E nesse momento o automóvel parou e descemos na portaria de um prédio de alto padrão, sempre precedidos pela assistente, que abriu a porta do carro, ajudou-nos a sair, chamou o elevador.  Na cobertura aristocrática, com vista para um parque com monumentos iluminados, fomos recebidos por duas empregadas, uma indiana e outra africana. Dona Abigail me apresentou como convidado e deu as ordens. Durante o jantar, como prometido, o casal contou-me sua história de amor.

Corria a II Guerra na Europa e as crianças inglesas eram afastadas dos pais envolvidos no esforço de guerra. Para ficarem a salvo dos bombardeios, a maioria era enviada para o interior, ficar com parentes ou famílias de acolhida, bem como em internatos. Os que possuíam meios enviavam os filhos para regiões sem conflito, especialmente na América. Os administradores dos frigoríficos britânicos no Rio Grande, no Uruguai e na Argentina recebiam seus parentes.
Em 1942, a Anglo S.A. iniciou a construção de um grande complexo industrial, às margens do canal São Gonçalo, inaugurado em dezembro de 1943. Durante a festa de inauguração, o jovem Gilbert só tinha olhos para uma princesa da Campanha, por nome Abigail, que era o mimo do pai, estancieiro de Jaguarão, com invernadas abarrotadas de bois e ovelhas.
O rapaz de seus 15 anos, gordinho e de cabelos vermelhos já arriscava algumas palavras em português, que ele se esforçava para aprender.  Descobriu que a donzela estudava no Colégio das Freiras e morava com as tias em Pelotas. Endereçou-lhe versos:
Vosso Gilbert descobriu
Abigail
Consultando estrelas mil
Alguém nasceu a primeiro de abril.
Pronunciar algumas palavras era uma coisa, se atrever a escrever em português era ousadia que lhe sairia caro. Além de desconhecer a língua que é mesmo das mais difíceis, ignorava a cultura.  Se a ignorância sobre a associação de versos românticos com o dia da mentira já bastava pra espantar a moça, podia passar sem reprimenda. Não fosse a infeliz coincidência formando o acróstico VACA, talvez nem tivesse sido expulso debaixo de vassouradas das criadas e das tias da menina.
Eu ria muito do jeito que ambos me contavam o caso, atropelando-se.
– Mas era um amor de garota! O senhor não desistiu, não é mesmo?!
- Absolutamente! Esperei na saída do Colégio e tanto me expliquei e me desculpei, que ela acabou perdoando.
O caso continuou mais hilariante, ainda. Sendo convidado para o aniversário de 15 anos, o inglesinho recebeu autorização de seus tios para ir a Jaguarão.
Como era o costume da Campanha, o pai fez festa gorda na estância, com carreira, rodeio e fandango. Pra comer, churrasco de boi e de carneiro em vala comprida, e peru por cabeça. Saúde e vivas da peonada com barulheira de foguetes e tiros de pólvora das garruchas. E tudo o que havia de mais hospitaleiro e cordial.
A noite teve baile na cidade, no salão da Sociedade Harmonia Lira.
A menina adorava dançar e tinha desembaraço no ambiente social, bem criada que era com professor de música, pintura, e até de inglês, mesmo sem ser o costume da época. O que se ensinava para os jovens da classe alta era o francês, mas o pai que via mais longe do que a maioria dos contemporâneos percebia que a influência dos ingleses e dos americanos no Pampa só fazia aumentar, movimentando o money.  Assim unia o útil ao agradável incentivando quem sabe a formação de uma futura intéprete para as melhores negociações com os compradores de língua inglesa.
         Ia o baile adiantado, com bela orquestra. A ansiedade da aproximação tornava o nosso jovem suarento e hesitante. Quando Gilbert tomou coragem e foi pedir a dança para Abigail estava encharcado dentro do terno de casimira.
 Como convinha, uma moça educada não se negava e saiu para dançar. Mal acabando quis pedir licença, mas o mancebo insistiu - mais uma, por favor. Ela então botou-lhe a mão no peito para mantê-lo afastado e disse:
         - Você sua muito!
E o Gilbert se derretendo todo:
- Me too. Eu também vou ser seu my Darling. E tascou-lhe um beijo.
 Nunca ninguém desceu a escadaria daquele clube tão depressa, na verdade atirado lá de cima pelos primos da aniversariante e com a ameaça do pai:
- Se eu te pego de novo perto da minha filha te amarro no palanque e te mostro como é que tourinho vira boi!
O bisonho tinha, como se diz, colocado a carreta na frente dos bois. Nesses tempos, o primeiro beijo público de um casal seria diante do altar, após a troca de alianças.
- Nessa altura já estava pensando que era mais seguro em Londres, debaixo de todo o fogo alemão! Disse o Seu Gilbert rindo e enchendo minha taça.
Dona Abigail, já coradinha por causa do vinho, deu sua versão:
- Eu fiquei estupefata plantada no meio do salão. As pernas me faltavam, mas parecia que flutuava. Jamais imaginara que o primeiro beijo seria tão intenso. Sentia borboletas no estômago. Tinham arrastado o Gilbert para fora, e eu ali parecendo uma estátua de Bellini: a Santa Teresa em êxtase. As amigas vieram me acudir. Saí correndo. Do alto da escada vi o Gilbert desmantelar-se nos paralelepípedos da rua e escutei a ameaça trovejante do meu pai. Corri para fora, agarrei-me a ele e gritei:
- Não faça isso com meu namorado, papai.
- “There is no second chance to make a first good impression.” Não há uma segunda chance para se causar uma primeira boa impressão? Hahaa, isso é uma bobagem. Eu tive mais do que isso, exclamou meu anfitrião. 
Gilbert não voltou para a Europa. Pediu permissão aos pais para viver no Brasil. Completou os estudos e casaram-se. Só foram viver em Londres bem mais tarde quando ele assumiu uma das diretorias do grupo.


Rosácea – elemento da arquitetura medieval; vitral em forma de rosa sobre a portaria principal das catedrais góticas.
Arquejo – palpitação, descompasso no coração.
Doxologia – na liturgia cristã, o Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Uma referência à ópera como glorificação da música, do canto lírico, e da encenação.
Adredemente – a priori, antes, antecipadamente.
Vento Minuano – como os gaúchos chamam o vento Sul.
Arcabouços – estruturas, carcaças, esqueletos.
Cosmópolis – cidade onde se encontram gentes de todo o mundo.
Bentley – marca de automóvel inglês luxuoso e muito caro.
Libreto – programa da ópera, com a história e as letras do canto lírico.
Partitura – caderno de papel com as linhas próprias para a grafia das notas onde estão registradas as diversas partes que compõe uma obra musical.
Bisonho – inábil, inexperiente.






ZÉ MACERA

conto

A pregação pentecostal desde que chegou ao povoado na Costa Doce, catalisou as atenções, dos prós e contras. A Igreja Católica, por falta de vocações, andava fraca das pernas e não cuidava do rebanho que se criava como guaxo, sem conhecer os ensinos, sem ver padre nem comunhão. De tal modo, o pentecostalismo, valorizando mais a experiência do que a tradição, alastrou-se como fogo em capim seco naquelas almas simples.


O Zé Macera, desde o início entusiasmou-se com a Mensagem do Evangelho, e todas as semanas, na hora do apelo, ia para frente entregar o coração a Jesus. Depois de umas sete ou oito vezes o missionário explicou que agora já não precisava mais vir junto ao púlpito, que era só esperar o batismo. Não adiantava. Na outra semana ele esquecia que já tinha aceitado o Senhor Jesus Cristo como seu Salvador pessoal e ia comovido fazer nova entrega.


- Eu renuncio tudo de novo – dizia, mas depois olvidava.


E na verdade deslembrava mesmo, pois, embora forte a carga contrária, não desistia da cachaça e do fumo em rama. Ultimamente estava bebendo e pitando as escondidas pra não ouvir a admoestação dos irmãos. Já não entrava na venda pra comprar, mandava o pequeno Neco, de cinco anos. Naquele tempo vendiam cachaça a granel. O freguês que quisesse levar tinha que trazer o recipiente. O Zé Macera reaproveitava a garrafa de conhaque São João da Barra, sem o rótulo, que é pra ninguém desconfiar.


- Toma Neco, vai lá na bodega e compra meio litro de canha, mas não mostra pra ninguém, recomendou pro piá.


Na volta o gurizinho olhou pela porta da Igreja e viu o pai entusiasmado na oração, gritando Glórias e Aleluias. Resolveu entrar e sentou no banco com a garrafa de água-que-passarinho-não-bebe do lado. Acabada a oração os crentes começaram a reparar e chamaram a atenção:


- Mas o que é isso irmão?


O Zé Macera:


- Mas Neco, meu filho, leva a água sanitária pra tua mãe.


E o Neco muito sério:


- Mas se o senhor mandou comprar cachaça, pai?


Assim o batismo ia se adiando, adiando, que nem visita ao dentista, ou banho em gato.


No domingo havia Escola Dominical. Pras crianças tinha a escolinha, numa sala nos fundos do templo, onde umas senhoras ensinavam as histórias bíblicas.


O Neco e o Joca, as duas crias do Zé Macera, não tinham muita paciência com historinhas sem ação. Quando não havia Sansão enfrentando leão e derrubando as colunas do templo, nem Davi peleando com Golias, eles mesmo iam matar o tempo do lado de fora, quase sempre arranjando encrenca. As professoras da escolinha depois se queixavam:


- Irmão Zé, os seus filhos assim, assim... Irmão Zé, o Neco e o Joca assim e assado...


Não é que a dupla fosse maleva, não, pelo contrário, eram até educadinhos e respeitadores. Era só garotice. Criados meio soltos, os pais lhes davam mais carinho do que limites. Um dia resolveram dar uma lição no cachorro do vizinho da igreja. Este não gostava de desafinação, e toda vez que a fanfarra dos crentes tocava, latia e uivava também. E o os moleques acharam de tacar umas pedras nele.


Aí o dono do cão foi reclamar.


Chamado o responsável pelos pestinhas, quis ele exemplar ali mesmo, na frente da Igreja e puxou de vereda o cinto. Não é que lhe caíram as calças até os pés?


Tinha comprado, de segunda mão, o terno cinza completo, calças, paletó e colete, que usava pra ir aos cultos. De dia com a gola da camisa por cima da gola do casaco, e de noite sempre de gravata. Mas o defunto era maior, por isso o cinto era imprescindível.


A cena ficou mais engraçada porque o Zé não largava a Bíblia por nada pra soerguer as calças e as tentativas foram várias, pra deleite da chusma de gaiatos que tomava pinga na bodega em frente e aproveitou pra chacotear.


Também aquilo de arrancar o cinto, de ameaçar guasquear, tinha sido encenação, pois que nunca batia nos filhos, nem em animais.


Talvez o leitor possa pensar que o Macera era o tipo imaturo, procurando ser aceito se mostrando, querendo aparecer. Não é bem esse o caso. Na verdade o Zé Macera sempre soube bem quem era, e dentro dos limites que a pouca instrução lhe reservara promoveu o seu auto-aprendizado num esforço contínuo de superação e busca do entendimento. Mal sabia ler, ganhava pouco, se vestia com simplicidade e todavia, não era nada inseguro, transpirava otimismo e autoconfiança. Isso porque tinha uma enorme imaginação moral, ou seja, a faculdade, cada vez mais desusada, de se colocar no lugar do outro, de compreender seus sentimentos, perceber suas tristezas e corresponder a suas expectativas. Estampava de maneira simples e direta o conceito de bondade pela prática, no seu trabalho, nas suas relações com as pessoas, com a natureza, e na sua religiosidade.


Num domingo o Zé Macera foi convidado pra almoçar na casa do evangelista. Sentia-se importante ali com a família do pastor e membros ilustres da igreja.


A senhora tirou da geladeira e colocou sobre a mesa uma garrafa desconhecida para o Zé Macera. O pastor que observou o olhar admirado do Zé resolveu caçoar dele.


- O irmão Zé aceita cerveja?


Os olhos do homem se arregalaram imaginando “pois será que bebem cerveja em casa?”


Fez que não, enfático, com a cabeça. “Pode ser um teste pra minha fé, pra ver se eu tô seguindo direitinho os mandamentos.”


A anfitriã serviu a todos, menos o copo do Zé, tampado com a mão. Quando ela soltou a garrafa sobre a mesa o manhoso voou em cima pra ler o rótulo. Demorou pra acolherar as letras, mas por fim exclamou aliviado:


- Quaaa! É guaraná!


Às quintas-feiras à noite os crentes iam ao culto de oração e de estudo bíblico. Depois dos hinos de louvor e das orações, que eram animadas e todos participavam, vinha a leitura e interpretação do texto sagrado por um dos irmãos. A sonolência era inevitável, especialmente para os que levantavam cedo e tinham jornada árdua.


As crianças que eram obrigadas a acompanhar os pais dormiam a sono solto, de se espichar nos bancos, menos a Guadalupe. Essa gostava era de dormir de dia. De noite ficava mais acesa do que lanterna de quatro elementos. E furunga daqui, furunga dali, sempre acabava por tomar uns beliscões de dona Herondina, sua mãe.


Procurando exortar os crentes, o missionário introduziu, nessas reuniões, o estudo de um livro que tratava do fim dos tempos e das aprontações do Capeta para desviar os salvos do reto caminho. E tanto se falava no Coisa-Ruim que o Zé Macera, que era impressionável, tinha pesadelos.


Estava o Zé Macera ferrado no sono, encostado na parede do fundo, de boca aberta, e a danada da Guadalupe, resolveu inspecionar-lhe a dentadura. Notando-lhe a úvula, a campainha ou sineta, naquele ir e vir no palato, resolveu que ia puxá-la. Enfiou a mãozinha com toda a delicadeza e agarrou. O dorminhoco acordou de supetão. Sobressaltado olhou aquela cara grudada na sua e gritou apavorado:


- Para trás Satanás!


O que de ridículo temos, de ingenuidade ou estultícia, na figura do Zé Macera, em nada o diminui como ser humano. O bom conceito de um homem não está em quanto ele ganha, nem no que possui, nem mesmo em quanto estudou, mas em como ele vive, e nas boas ações que pratica em favor do próximo.


Pois olhe que nosso personagem, embora simplório, tinha seu valor em delicadeza e serventia. Jamais relou um dedo em alguém, nem mesmo nos filhos, ou nos cachorros. Educava com conversa e com exemplo. Era honesto e prezava a honra. Jamais comprara fiado, exceto no crediário da loja de eletrodomésticos. Primeiro o fogão a gás, em seguida a geladeira. A televisão veio depois dos estofados. Todas as prestações pagas rigorosamente em dia. Começou a trabalhar ainda gurizão, nas obras da Prefeitura. Com o tempo e o merecimento ganhou estabilidade. Fez o Curso de Manutenção e Limpeza Urbana e foi destacado para a vila onde morava, na beira da Lagoa dos Patos.


O lugar era pouco mais do que uma colônia de pescadores, com algumas casinhas simples dos peões de gado e de enxada que trabalhavam de empreitada nas fazendas em volta. Havia umas poucas residências de capatazes de granjas, motoristas, tratoristas, que eram casas mais aprumadas. Um engenheiro da prefeitura, com visão para o futuro traçou novas linhas de urbanismo, com ruas bem largas, em forma de tabuleiro de Xadrez, e uma área para praça, outra para o grupo escolar e para o posto de saúde.


E assim como foram abertas as ruas pela patrola, ficaram abandonadas, o mato crescendo de novo, serviam de pasto para os poucos animais criados no vilarejo. O funcionário Zé Macera que assistira ao engenheiro, resolveu que iria florestar as ruas para a posteridade e produziu mudas de árvores no seu quintal. Aos poucos foi plantando, nas beiradas, onde seriam as calçadas, e no centro, onde haveriam canteiros, tudo muito calculado, seguindo uma linha bem riscada. Apoiando a sua iniciativa o pessoal das fazendas, a vizinhança, os chefes da prefeitura, enfim, muita gente contribuiu com o plantio.


- Daqui alguns anos isso aqui vai ter um valor danado. O mundo vai esquentar e as pessoas vão querer veranear aqui na beira da Lagoa, dizia em tom profético.


Aplicando os ensinamentos do curso que fizera, o gari, instruiu a população a enterrar o lixo orgânico e a transformar em adubo, e a por pra fora, acondicionado, o lixo industrial e reciclável, que esse ele iria recolher diariamente. Para tanto, treinou um burrão que criava desde tenra idade e que tinha inclusive amamentado com mamadeira. O animal o seguia e obedecia, conforme ele falava. Encomendou na intendência uma carroça de quatro pneus e os arreios necessários, mas dispensou freio e bridão, que isso o animal não carecia. Instruído nas suas obrigações o animal passou a executá-las a perfeição. Seguindo o comando de voz do Macera, parava direitinho ao lado do material a ser recolhido, depois seguia prontamente para o próximo, e assim faziam diariamente a coleta, exceto aos domingos.


Conforme o povoado foi crescendo, com o progresso da agricultura, o incremento da pecuária e a construção das primeiras casas de veraneio, recebeu o posto de saúde e o pelotão da Brigada Militar, que por viver na ociosidade, era reduzido a dois soldados e uma viatura. Instalou-se também a primeira agência bancária, que era na verdade um caixa só, pras pessoas pagarem as contas e receberem os vencimentos.


Pois houve que uma súcia organizou-se pra rapinar tais postos bancários em lugares pequenos, sem muita vigilância, e fugir com rapidez por estradas vicinais. E eram três assaltantes perigosos, muito bem armados, que chacinavam sem compaixão, já dando o que falar nos interiores do Estado. Chegavam de repente, um ficava no carro com o motor ligado e as armas na mão, outro fazia reféns, e o terceiro limpava o caixa e os viventes que estivessem por perto. E em menos de dois minutos já sumiam na poeira da estrada.


Foram bulir no vilarejo. Seguiram a tática. No exato momento em que saía o ladrão com o malote o Zé Macera distraído no afã de seus afazeres, adiantou-se pra pegar o latão de lixo. O malvado lhe enfiou uma coronhada de carabina nos peitos e o coitado voou longe. Pra quê? O burrão avançou com ferocidade pra defender o dono e mordeu o braço do bandido. Não fosse a japona lhe decepava o braço. O elemento se apavorou, deixou cair o malote e a arma. O do carro gritou e começou a atirar. Os reféns apavorados saíram correndo. O burro ergueu as patas dianteiras, quebrando o para-brisa e dando-lhe pisadas na cara. Bala zuniu pra todo lado, mas aí os policiais responderam o fogo. Pra encurtar a história, o burro trucidou o do volante no coice e os outros dois viraram peneira de chumbo dos brigadianos.




glossário

Pentecostalismo – movimento de renovação carismática que enfatiza manifestações dos dons do Espírito Santo.


Costa Doce – a costa do complexo lagunar do Rio Grande do Sul, em oposição ao litoral Atlântico.


Fanfarra – conjunto musical, banda


Guasquear – o mesmo que chicotear


Chusma – turma de marinheiros, bando


Patrola – máquina de terraplanagem usada para a abertura e manutenção de estradas de chão.


Brigadianos – Soldados da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, polícia militar.










OS CABELOS DE DONA BRANCA




            Branca chegou à vida perdendo. A mãe não resistiu às complicações do parto. A bebezinha foi aparada e criada por Mãe-Obá, uma negra mandingueira, que foi sua mãe de leite e quem lhe deu o apelido.
Na pia batismal recebeu o nome de Ana Clara e teve confirmada a promessa da genitora agonizante, dedicando a Santa Ana, a avó, de Nosso Senhor Jesus Cristo, os cabelos que jamais poderiam ser cortados até que tivesse a primeira gravidez.
O pai era um estancieiro das antigas, com uma sesmaria de campos e aguadas a perder de vista, coalhada de gado. Gadaria orelhana cuidada por tantos agregados e posteiros.
A menina cresceu como xodó de todos, reinava absoluta entre a gurizada da estância. Fazia o que queria, desde subir em árvores pra ver ninhos de passarinho, caçar mulitas, montar arapucas, comer araçás, tomar banho nas sangas. Montava a cavalo com sela ou em pelo, ajudava a botar as vacas, apostava carreiras.
Aprendia em casa, com professores itinerantes, temporada de letras e aritmética, outra de música e artes plásticas. Aos doze anos, colégio de freiras no Alegrete, oito meses no internato e quatro em casa até se formar. Com dezoito, mesmo contra a vontade, seguiu o arranjo do pai e uniu-se ao capataz Porfírio Corrêa.
Porfírio era dessa qualidade de pessoa que pensa que é mais do que os outros, que se acha mais importante, que acredita ter mais direitos, e entende que a Lei só existe pra lhe favorecer sendo aplicada contra os seus inimigos.
 Para não parecer que casava por interesse declarou no dia das bodas:
- Ana Clara, minha esposa, a maior riqueza que eu tenho é a sua cabeleira. Desprezo todo o resto por ela, assim como te desprezarei no dia que a cortares.
A nubente, senhorita de boa índole, não viu afronta no dito, e dele, como todos, achou graça. Só Mãe-Obá percebeu na empáfia e no mau verso o prenúncio de uma desgraça.
Quando mais tarde tentou lhe explicar a promessa da mãe o Pofírio endureceu:
- Não vou atrás da conversa dessa negra fuxiqueira. A mulher casada obedece ao marido e estão desfeitas as promessas e remessas.
Queixou-se ao pai. Este deu razão ao marido. Além da reprimenda, Mãe-Obá foi expulsa da casa grande e mandada pra viver no povoado.
A jovem percebia que lhe botavam arreios, freio e boçal, mas não permitiria que lhe cravassem as esporas.
Meses depois, quando Mãe-Obá confirmou a gravidez, não correu para contar ao marido. Foi primeiro ao barbeiro e mandou tosar a melena. Abundantes cabelos negros, bem cuidados, com fios inteiriços que lhe chegavam além das nádegas, cortados na altura dos ombros. Ficava bem. Cumpriria a promessa no altar de Sant’Ana, e em pouco tempo teria de novo longas madeixas.
Manhã nublada de janeiro, chuva fina persistente após o temporal da noite. Sem camisa, pés descalços, calça arremangada até os joelhos, suspensórios, os piás aproveitavam pra correr de bicicleta, dar freadas na lama e derrapar nas poças d’água.
Notei quando atravessou a praça acompanhada da senhora negra e duas mulatinhas. Abriam e fechavam as sombrinhas e riam, um riso branco de copo-de-leite. Fiquei parado, olhando, um pé no chão, o outro no pedal pelo meio do quadro da bicicleta grande. Desde sempre eu atinava com a beleza das mulheres. E essa era formosa de parar o trânsito, mesmo que fosse só das bicicletas dos guris, naquele povoado modorrento.
Ficamos a dar voltas por perto, passando devagarzinho para apreciar o trabalho do cabeleireiro, e tecendo comentários sobre o inolvidável corte. Tenho nítida na memória a mulher a se olhar no espelho, sentindo o cabelo com as mãos, de um lado e outro e sorrindo do estranhamento. As gurias e a senhora em volta, e depois o barbeiro vindo na rua sacudir o lençol branco no qual ele enrolava as pessoas quando repicava os cabelos.
Então um cavalo surgiu a galope e deu uma esbarrada, jogando lama na gente. Porfírio apeou retinindo as esporas, adaga e Smith & Wesson na cintura.  Cuspindo marimbondos:
            - Quem esse cabelo aparou o resto há de cortar de graça e a navalha na cabeça passar.
O barbeiro quis dar pra trás, que isso era uma barbaridade que ele não fazia e coisa e tal... Mas o desvairado marido puxou o laço e amarrou a mulher na cadeira, até o pescoço, naquela esticadeira usada pra encostar a cabeça de quem se barbeava. Meteu um balaço no espelho e fez as mulheres correrem porta afora. A rua, a praça e até as casas ficaram desertas. Janelas e portas fecharam-se. Ninguém queria ser testemunha da desavença conjugal.
A jovem esposa, pálida, morta de medo e vergonha, tremia crispando os dedos nas guardas da cadeira. Sendo tosquiada, presa como um animal, o couro rústico do laço cortando-lhe a carne.
Sem pretender me quedei paralisado, assistindo a tragédia daquela mulher, até que o bruto a jogou para fora e aplicou-lhe um chute na barriga. Sozinha, humilhada, jogada na lama. Larguei a bicicleta e corri para ampará-la. O bandido montou e ficou com o cavalo escarvando em volta de nós. Eu gritei:
– Sai daqui seu covarde, deixa ela em paz.
O desgraçado baixou o relho nas minhas costas e se foi.
Então, por cima da ignomínia e da dor houve um constrangimento louco, de raiva e de lástima. Erguendo a mão do barro gritou buscando forças no âmago, clamando por justiça – tu vais pagar por isso seu maldito.
Segurou a minha mão e agradeceu me chamando de meu mosqueteiro. E ironizando pra ela mesma repetiu – mosqueteiro da rainha destronada. E chorou sentidamente, a cabeça no meu peito, os restos de espuma, o sangue dos cortes da navalha e as nossas lágrimas escorrendo até o chão.
O meu coraçãozinho infantil nunca tinha sentido tanta indignação. Acho que nem o dela. Era o nosso primeiro confronto com a inexorabilidade da violência, da crueldade, da maldade dos homens. Fiquei olhando calado para a mulher vilipendiada, magoada, ferida, como quem pede perdão por não conseguir defendê-la. A chuva refrescando o vergão da chibata no meu lombo.
De repente atinei pro rangido de um carroção. Vinha lento abrindo sulcos na estrada, trazido por duas juntas de bois de aspas grandes. Uma melopéia tão triste pelo ar parecia um arquejante soluço. Um guri de cabelos cor de fogo com as rédeas na mão, andando ao lado, os pés chapinhando no barro. Parou no meio da rua. Quatro mulheres desceram, envolveram Dona Branca com cuidado, deitaram-na num colchão sob o toldo arqueado, fecharam a tampa e prosseguiram na mesma marcha para fora da vila, os badulaques de cobre retinindo baixinho nos lados.
Três dias depois o moleque das ciganas passou a galope e jogou na porta da igreja caiada de branco, um pelego com um feto enrolado. Escrito com sangue no couro, “Todo o mal recaia sobre Porfírio Corrêa”. Furioso, o amaldiçoado juntou uma corja pra perseguir as ciganas, mas não encontraram. Durante um ano enviou espias nas quatro direções do Pampa. Nada. Tinham ganhado o mundo, e Dona Branca com elas.
Daí por diante a Vila definhou. Virou o lugarejo mais pobre e atrasado de todo o Rio Grande.  As intempéries açodaram as pragas sobre a terra que nem no Egito faraônico pelas mãos de Moisés. Temporais de granizo acabaram com as telhas e as plantações. A enchente destruiu as ruas, a praça e a antiga igreja. Depois, seca, nuvens de gafanhotos, carrapatos, mutucas. Os rebanhos finaram-se de fome e de moléstias. Os jovens foram-se. Ninguém casou, nem nascimentos se registraram, somente óbitos.
O pai pereceu de derrame no mesmo ano em que ela partiu. Porfírio padeceu as agruras da perda dos rebanhos, incêndio na casa grande, o abandono dos seus, o alcoolismo, a demência e por fim o tumor que o consumiu.
·      * * *
Campanha – região do Pampa no Estado do Rio Grande do Sul.
Orelhana – gado ou reses sem marca.
Posteiros – peões residentes nas divisas das estâncias.
Inolvidável – muito incomum, memorável.
Sanga – córrego, riacho.
Modorrento – lugar quieto, sem movimento.
Smith & Wesson – marca de revólver.
Melopéia – cantilena, toada.

A VELHA DAMA DE PELOTAS



                    A cidade de Pelotas é conhecida como a Princesa do Sul. Cidade rica desde os tempos antigos devido as charqueadas e ao seu excelente porto, teve seus ares aristocráticos cultivados desde os tempos da colônia.                                    
                    O Segundo Império foi a época do apogeu da nobreza local, que inclusive, construiu inúmeros palacetes com salões onde se faziam reuniões e bailes. O mais famoso, por certo, é o solar da Baronesa de Pelotas, que até virou museu. Mas não era qualquer família por mais endinheirada que fosse que podia receber nos seus salões. A fina flor pelotense era como azeite na água, não se misturava. Para dar um baile era preciso ter nome, prestígio, respeitabilidade. Se não, ninguém comparecia.
Depois da Proclamação da República a nobreza entrou em desuso. Muitos meteram a viola no saco ou foram tocar em outra freguesia, que o Rio Grande não dava mais espaço pra quem não fosse republicano, maragato ou chimango.
                    Pois a dona Herondina que era a lavadeira da minha avó, lá em Camaquã, gostava de contar a história de uma dama do Império, para a qual a mãe dela tinha trabalhado quando vivia em Pelotas. Diz que essa senhora era até sobrinha de uma afilhada da Princesa Isabel e que não tendo mais parentes nem marido vivia solita em um palacete caindo aos pedaços. Não por pobreza, mas por tristeza, por desânimo, por falta de motivação. A pessoa vai ficando assim, mais enrustida do que bicho de caramujo. 
          Pois quando terminou a Grande Guerra, em 1918, a burguesia pelotense quis comemorar. Afinal tinham enchido as burras de dinheiro, exportando carne, arroz e compota de pêssego para os povos beligerantes. Começaram a organizar bailes onde conforme a tradição pelotense, conservada até hoje, a mulherada comparecia afogada em peles e entulhada de ouro e pedras. A encanecida dama ao receber os convites se indignava - que essa gente não tinha nome, que eram comerciantes, atravessadores de arroz e fabricantes de pessegada, gente sem cultura, que não conhecia a tradição, os bons modos, as boas maneiras. Iam lá saber receber?
          E tanto se afrontou que resolveu ela mesma dar um baile, com toda a pompa e circunstância, como aqueles de antigamente. Elaborou tantas regras para a seleção de convidados que considerava os pecados até das bisavós. Depois viu que não ia encher a casa e abrandou um pouco, que os tempos estavam mesmo muito mudados, tinha que ser mais complacente. E o que ela queria mesmo era dar o exemplo, afinal ela tinha fugido à responsabilidade por muitos anos. Não podia deixar morrer a tradição, a arte e a elegância de receber nos salões familiares.
      
 E assim fez os preparativos: o solar foi todo pintado, os muros reconstituídos, os jardins replantados; por dentro trocou as cortinas os veludos e brocados, lavaram-se as tapeçarias, lustraram-se os metais, os lustres e pratarias; mandou vir uma orquestra de Porto Alegre; contratou as melhores cozinheiras e doceiras, garçons, copeiras, uma tropa de lacaios, e é claro, encomendou 30 caixas do melhor champanhe.
Durante dois meses um batalhão de gente trabalhou no casarão, sob a supervisão enérgica da senhora, que por mais que tivesse 80 anos era forte como um tronco de angico. E quando chegou a data do baile estava tudo impecável, os jardins iluminados e o salão brilhando desde o piso até o teto.
         Com tudo arranjado e o pessoal a postos a dama subiu aos seus aposentos onde a mãe da dona Herondina, que era a camareira, ajudou-a a se preparar.
                    Às nove em ponto ela apareceu elegante num vestido azul com um diamante no peito faiscante como seus olhos. A orquestra atacou a “Marcha da Anfitriã” enquanto ela descia imponente pela escadaria em arco. A mão anelada no corrimão dourado e a outra segurando a ponta do vestido e um leque espanhol semi aberto.
          Postou-se diante do portal a olhar para fora esperando os convidados, mas ninguém apareceu. A orquestra, para se manter animada de vez em quando tocava uma valsa, uma marchinha que ecoava no salão vazio.       
        À meia noite chamou os músicos da orquestra e todo o pessoal de serviço e disse com altivez:
-       Senhores, queiram por gentileza passar para o salão de jantar.
A ceia vai ser servida. Esperou que todos se acomodassem, deu boa noite e subiu para o seu quarto.
Na manhã seguinte foi encontrada morta.
                    Só uma semana depois é que a mãe da dona Herondina descobriu o que é que havia acontecido: encontrou uma caixa com os convites. A velhinha tinha se esquecido de enviar.

domingo, 13 de janeiro de 2013

A DAMA DA PONTE


Nessa época eu trabalhava dia e noite pra pagar as promissórias do caminhão e ainda juntar um dinheirinho pra casar. Preferia as cargas pela BR 116, pois sempre que passava em Mafra podia dar um beijinho na Dorilda – a gente já tinha noivado!
Pois uma tarde cheguei a Lajes, vindo de Curitiba, descarreguei e fui tomar banho e jantar no antigo posto Lajeano. Um outro caminhoneiro me avisou que tinha uma carga em Vacaria, pra puxar pra Curitiba, e me passou o número da transportadora. Telefonei e me comprometi de carregar às seis da manhã. Nisso já era umas nove da noite e eu, já de barriga cheia, de banho tomado e com o bruto abastecido, me larguei pra estrada.
Noite borrascosa de setembro, com garoinha  molhando o para-brisa. Se tudo desse certo antes da meia noite já estaria dormindo em frente a transportadora de Vacaria; mas não, aquela noite ia ser bem mais longa.
A estrada era nova, recém tinham feito o asfalto, e mal acabada, sem sinalização, especialmente naquele trecho deserto entre o Rio Grande e Santa Catarina. A ponte da divisa, sobre o Rio Pelotas, nem tinha sido inaugurada, que político não vai, assim no mais, a lugar sem palanque, sem povo pra aplaudir os discursos. Essa que eu tô falando é a ponte antiga, a primeira, que foi arrastada pela enchente. Hoje só restam as cabeceiras, cravadas nas barrancas e alguns pilares na parte rasa do rio. Era estreita, sem acostamento, e pra quem vinha do lado catarinense, surgia meio que de repente, depois de uma curva e já descendo pro rio. 
Eu já ia passar a quarta quando me dei conta de um reflexo de luz vermelha e um clarão na garoa, aí fui reduzindo, tentando entender o que era aquilo. Parei a uns vinte metros da luz. Tinha um Sinca Chambord acidentado. Entrou com tudo na cabeceira da ponte, num desnível grande do concreto para o asfalto. Ficou meio atravessado, com a traseira pra baixo, jogando a luz de um farol pra cima. Do capô meio aberto subia o vapor do radiador estourado.
Estacionei com as luzes acesas, corri morro acima até a curva e vim arrancando umas touceiras de capim e jogando na pista pra sinalizar, caso viesse outro motorista menos atento. Depois ia ver o carro, mas na hora que olhei pra ponte vi um corpo jogado. Pela posição parecia estar todo quebrado, com muito sangue no piso de cimento da ponte. Meu deus, pensei eu, é uma mulher.  A pessoa tinha sido arremessada para fora do veículo.
Fiquei meio desatinado, sem saber o que fazer até que fui no caminhão e peguei a lanterna de pilhas pra vistoriar o interior do automóvel. Tinha um pelego caído na parte de trás, na frente o painel quebrado ao meio, o soalho do carro levantado no lado direito, um casaco de mulher.
Pensei que a dona estava sozinha, e fui de novo ver o corpo. Parecia um boneco de Judas, os membros de qualquer jeito, o cabelo longo meio embolado e desgrenhado, o sangue brilhando com as gotinhas de garoa... aquilo me deu uma náusea.
Varri a pista em volta com o facho de luz. De repente percebi um brinquedinho, um jipe de plástico vermelho, tava lá no meio da estrada, com as rodinhas viradas pra cima. – Meu Deus – Pensei – Tem uma criança aqui.
O menino tava na parte de trás, debaixo do pelego, imprensado entre os bancos. O vidro da porta de trás tinha se quebrado e a porta estava emperrada. Tentei alcançar pela janela, mas o carro estava mal se equilibrando sobre o despenhadeiro.
Voltei ligeiro pro caminhão e parei mais perto. Puxei o cabo de tração e amarrei no chassi do Sinca. Dei a ré com o FNM e arrastei o carro mais pra cima, pra um lugar seguro no acostamento.
Com um tirão arranquei a porta e graças a Nosso Senhor, que me fez forte, consegui afastar os bancos. O menino estava enrolado em um cobertorzinho. Decerto vinha dormindo. Tirei com todo o cuidado e estendi sobre o pelego. Parecia que tava vivo. Levei pra boleia e ajeitei na minha cama.
Agora eu tinha que soltar o cabo e limpar a estrada. Essa parte foi mais difícil, eu confesso. Pra atravessar a ponte precisava arredar o corpo. Vocês não calculam o quanto sofri. Pensei que ia ter pesadelo com isso o resto da minha vida.
Limpei as mãos no capim e aproveitei o pára-choque solto do carro para fazer uma proteção. Então fiz o FNM dar tudo até o hospital de Vacaria. Parei na frente e saltei para o ar frio da madrugada. O enfermeiro da portaria acordou com o rugido do motor e os suspiros do freio e veio ver o que era. Disse pra deixar o menino na cama do caminhão até o médico ver. Daí um tempinho o Doutor chegou enfiando uma japona por cima do pijama. Subiu na boleia e examinou o guri. Desceu com ar preocupado. Mandou acordar todo mundo, preparar uma injeção e dar um jeito de imobilizar o piazito, antes de descer com ele do caminhão. Dava cinco da manhã quando levaram pra dentro. Me pediram pra voltar às oito para preencher o prontuário.
Voltei pro caminhão sentindo o cansaço chegar. Abri a porta e vi a placa amassada que eu tinha arrancado do pára-choque do Sinca, então me lembrei que precisava avisar a Patrulha Rodoviária. O patrulheiro já estava mateando e vendo o meu estado disse:
- Senta aí paisano, toma um chimarrão e te esquenta que eu vou telefonar pra Lajes.
Depois foi escrevendo a ocorrência e anotando os meus dados até me liberar provisoriamente:
- Tu vais ter que ficar por aí mais um pouco até aparecer alguém da família pra se responsabilizar pelo piá.
Liguei o caminhão e tratei de encontrar a transportadora. Felizmente o dono já tinha chegado e eu pude explicar a minha situação. Ele me disse:
- Rapaz, tu és um herói. Não te preocupes que a carga é tua. Pode encostar no cais, e a hora que te liberarem tu partes.
Passava das sete da noite, quando o carro da Patrulha Rodoviária parou no posto, onde eu esperava com o caminhão carregado. O policial me explicou que já tinham localizado os parentes das vítimas e eu podia partir. Tinha dormido só uns cochilos durante o dia, e me acordava sempre sobressaltado, mas decidi tocar até Lajes.
Segui devagar remoendo os acontecidos desde a noite anterior. A garoa fina e fria formava duas colunas no brilho dos faróis. O FNM com sobrepeso, como no mais das vezes, roncava forte nos Campos do Alto da Serra, obedecendo as precisas engatadas de quarta marcha sem o uso da embreagem. Eu tinha só vinte e quatro anos e já era motorista experiente, dirigia com responsabilidade, sem jamais usar a banguela naquela estrada traiçoeira. Na descida pro Vale do Rio Pelotas, o urro do motor engrenado reverberava no paredão de pedra. Na cabine o ar esquentava, então, de janela aberta, com o cotovelo pra fora, ia imaginando a vista do rio lá embaixo, serpenteando entre as montanhas cobertas de florestas.
Pouco antes da ponte tem uma espécie de praça com banheiros e água para os viajantes. Naquele tempo não passava de um aglomerado de barracões abandonados, a moradia provisória dos trabalhadores que tinham aberto a estrada e construído a ponte. Parei, como era de lei, para refrescar o motor e as lonas de freio que esquentavam muito na longa descida. Apeei com o martelo de madeira e bati os pneus. Depois, com a toalha no pescoço, fui me aliviar, lavar a cara e beber água na bica.
Estava me sentindo meio angustiado, achei que era por ter que passar pelo local da tragédia. A lembrança me veio forte. Meti a cabeça debaixo da água gelada e bufei alto, rompendo o silêncio da noite pra desanuviar.
Voltei pro caminhão secando as melenas e batendo as botas no asfalto na frente dos faróis acesos. Abri a porta e joguei a toalha pro banco com a cabeça baixa, procurando encaixar o pé no estribo. Então escutei uma risadinha triste, meio constrangida. Não é que a dona estava sentada ali e eu tinha jogado a toalha molhada em cima dela? Fiquei embasbacado, com os olhos arregalados, sentindo um calafrio na espinha. Muito sem jeito balbuciei:
- Me desculpe, Dona. Eu não vi a senhora entrar.
- Eu é que peço desculpas por invadir o seu caminhão – Disse ela com uma voz tristíssima - Será que o senhor pode me levar até o outro lado da ponte?
Eu fiz que sim com a cabeça, o coração batendo no peito que nem tambor. Dei o arranque e segui forçando a máquina, só atinando de soltar o freio na entrada da ponte, me atrapalhando todo na mudança das marchas.
Era ela, sim, o mesmo cabelo negro que eu vira emplastado no asfalto estava penteado, a blusa com bordados de flores que eu tinha visto encharcada de sangue, branquinha.  Sentada com as mãos postas sobre a saia plissada, a cabeça ereta, tinha a estampa de uma dama altiva.
No lado catarinense ela disse:
- O senhor pode parar aqui, por favor?
Eu parei. A dama então se virou e me olhando bem nos olhos perguntou:
- O meu filho está bem?
- Ele vai ficar bom, Dona – eu assenti bem enfático.
Então ela pousou a mão no meu braço e tirou o meu nervosismo, acalmou o coração e me deixou em paz.
- Deus lhe pague.  Que Nosso Senhor Jesus Cristo ilumine o seu caminho.
Dizendo isso ela sumiu. É, evaporou-se bem diante dos meus olhos.
Ficou na cabina um perfume suave, muito, muito bom, que eu nunca mais senti igual. E a toalha sobre o banco, sequinha e perfeitamente dobrada.