Artigo REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
A Lição do Passado e as Conquistas do Presente
1822-1972
1822-1972
por TEIXEIRA SOARES
«Eternity is in love with the productions of time.»
WiLLiAM BLAKE, (Proverbs of Hell)
I
Em fins de 1791, a Rainha Dona Maria I apresentara claros indícios de
alienação mental. Em 10 de janeiro de 1792, a «Gazeta de Lisboa» divulgara
a triste notícia numa linguagem de circunstância palaciana, mas
esclarecedora. Intensa foi a comoção da Corte e do povo.
E fizeram-se preces e mais preces nas igrejas, convocaram-se médicos, tanto
portugueses como estrangeiros. Por decreto de 10 de fevereiro de 1792 o Príncipe
Dom João, do seu título Príncipe do Brasil, foi investido nas funções de governo.
Eis a fraseologia adotada pelo novo governante: «Deferindo-se-me o
exercício da administração pelo notório impedimento da moléstia da Rainha,
Minha Senhora e Mãe, a quem pela decisão dos professores seria nociva a
aplicação a negócios e o cuidado na expedição deles; cedendo às circunstâncias
que constituem uma necessidade pública e à constante vontade da mesma Senhora,
oportunamente insinuada, resolvi assistir e prover ao despacho em nome de Sua
Majestade, e assinar por ela, sem que na ordem, normas e chancelaria se faça
alteração, tudo enquanto durar ou houver o impedimento de Sua Majestade.»
Com tão propositada prudência e tão demoradamente o fez o Príncipe Dom
João que não tomou desde logo o título de Regente ou de Governador,
limitando-se a assinar papéis como se fosse apenas o primeiro escrivão do Reino ou coisa
parecida. Tibieza de caráter ou exagerada prudência por falta de cabal
conhecimento dos assuntos administrativos e políticos? Seja como for, prudente
ou fraco, ou contrariado nos seus desígnios por personalidades influentes da
nobreza, fato é que só em 15 de julho de 1799 ele assumiu o título de Príncipe
Regente. Por conseguinte, de 10 de fevereiro de 1792 a 15 de julho de 1799 o
Príncipe Dom João assinou papéis...
Depois do reinado mandarinesco de Dona Maria I, tão prejudicial ao
desenvolvimento econômico do Brasil, surgia o reinado de um Príncipe
modorrento e paciente, lerdo e atilado, que se revelará profundo conhecedor dos
homens e afrontador seguro (ou aparentemente seguro) das mais imprevistas
circunstâncias. A verdade era a seguinte: a Corte de Lisboa se empedernira em
foros, protocolos, usanças, velharias e superstições. Os mais prestigiosos fidalgos
julgaram que o Príncipe Dom João fosse fraco, ignorante e supersticioso;
pensaram que bem poderia ser um pau-mandado, o que seria muito cômodo para o
prosseguimento das intrigas palacianas dos grupos da nobreza que se entredevoravam
ora com sanha, ora com muita paciência. Sempre vivera a Corte
impressionada com exterioridade protocolares, código de precedências, limpeza de
sangue em se tratando de fidalgos antigos ou recentes, e rosicleres de brilhantes.
Por isso, a Corte se abrutalhara na rotina e na superstição, enquanto lá fora rugia a
Revolução Francesa.
A Corte, que rezava e tremia a um relâmpago mais forte, parecia ignorar o
mundo.
Contudo, algumas personalidades, entendedoras de boa política e fina
diplomacia, enxergavam longe, procurando realizar uma política de previsão.
Justamente por causa da Revolução Francesa, de dia para dia cresciam as
dificuldades para a Corte de Lisboa. Depois de haver participado da estranha
guerra do Rosilhão, na qual tropas portuguesas e espanholas combateram contra as
francesas da Revolução, nos Pireneus, Portugal foi abandonado pela Espanha e
pela Inglaterra. O exército português, despachado ao Rosilhão, comandado por
Forbes Skellater, oficial escocês a serviço de Portugal, regressou humilhado e
desorganizado. Quando, em Basiléia, França e Espanha assinaram um tratado pondo fim a
essa guerra, Portugal ficou de fora.
Antônio de Araújo e Azevedo, Ministro em Haia (e que será o futuro Conde
da Barca), espírito muito culto e versado em boa literatura francesa, inglesa e
alemã, foi despachado a Paris em 1796 para negociar um tratado com a França,
que libertasse Portugal de tão desairosa situação. Araújo trabalhou muito,
diligenciou com tenacidade, conversou à larga e, afinal, assinou o tratado de 10 de
agosto de 1797, pelo qual Portugal teve de pagar uma indenização de 10 milhões
de libras tornesas (ou 1.600 contos fortes), que teriam ido para o bolsinho dos
membros do Diretório. A República condescendeu em que Portugal continuasse
com sua aliança com a Inglaterra, sob condição de não lhe proporcionar ajuda em
caso de guerra com a França. Neutralidade, por conseguinte. Somente seis navios
ingleses no máximo poderiam refrescar nos portos portugueses. Tratado
humilhante que provocou protestos de Sousa Coutinho, Ministro dos Negócios
Estrangeiros, que escreveu à Embaixada em Londres para lhe dizer que as
cláusulas referentes à neutralidade de Portugal em caso de guerra entre a França e
a Inglaterra, bem como quanto ao número de navios em portos portugueses, não
seriam ratificadas. Contudo, uma bomba estourou, porque o tratado, por não ter
sido ratificado por Portugal na data exata, foi anulado pela França. Em certo dia de
dezembro de 1797, Araújo, Ministro de Portugal, foi simplesmente encarcerado na
Prisão Du Temple, donde só saiu em março de 1798. Diz-se que a França tomara
essa estranha decisão, porque Araújo se gabara de haver corrompido uns tantos
figurões do Diretório. ..
Formaram-se na Corte de Lisboa dois partidos: o «inglês» e o «francês». O
Príncipe Regente era uma casca de noz no mar encapelado das intrigas tecidas
entre as duas parcialidades. A cada sopro dos maus ventos, procedentes de Madri
ou de Paris, sentia-se que Portugal acabaria empolgado por uma guerra. Por
conseguinte, a diplomacia de Lisboa trabalhava com afinco para evitar que
Portugal fosse envolvido pela guerra. Nas reuniões, que se realizaram em Lisboa e
Mafra em 1807, imensa foi a confusão e disparatadas as opiniões dos conselheiros
do Príncipe Regente. Antônio Sardinha, num ensaio magistral publicado em seu
livro A prol do comum, livro realmente admirável, afirmou que o «partido francês»
era o «partido da neutralidade a peso de ouro», do qual era figura principal
Antônio de Araújo e Azevedo. Pormenor curioso, e muito curioso mesmo:
informado por sua espionagem de que algo se tramava em Lisboa quanto à
transferência eventual da Corte para o Brasil, Junot despachou a toda a pressa a
Lisboa o seu agente Herman, antes que seu exército, o «exército da Gironda»,
iniciasse a marcha batida, através da Espanha, para invadir Portugal. Disse Junot
no seu «Diário»: «Mr. Herman ne püt voir ni le Prince ni Mr. d'Araujo; celui-ci
seulement lui fit dire que tout était perdu.» Precipitam-se os acontecimentos
suscitados por uma decisão histórica e da
mais alta importância política: o Príncipe Regente ordena a transferência da Corte
para o Brasil em 15 navios de guerra e mais de 20 mercantes, que transportaram
cerca de 15.000 pessoas; e, antes de partir, nomeou uma Regência para dirigir a
vida administrativa do Reino de Portugal. Essa Regência, exceção feita do
Principal Miguel Pereira Forjaz, depois Conde da Feira, timbrou em manifestar-se
subserviente aos mandos e desmandos de Junot. Forjaz será o reorganizador do
exército português na campanha contra as invasões napoleônicas.
II
A MARCHA PARA A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Em nosso entender, com a chegada do Príncipe Regente Dom João ao Rio de
Janeiro em 1808 começará a independência do Brasil.
Novo Império surgirá da decisão histórica do Príncipe Regente, como disse
Gonçalves dos Santos nas suas Memórias para servir à História do Brasil.
A presença do Príncipe Regente, assistido pela Corte, no Rio de Janeiro,
ativou um processo intenso e profundo de descolonização, paralelo a um processo
de universalização do Brasil, transformado em assunto da Monarquia lusitana.
Nessa obra gigantesca de tudo fazer, e fazer com intensidade e rapidez, o Conde
de Linhares será o obreiro excepcional. O Marquês de Funchal, ao estudar a ação
administrativa e política de Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, afirmou que ele foi
um «novo Pombal». Oliveira Lima sentenciou que Linhares foi um criador de
Império, mercê da instituição de um poder central, forte e prestigioso. Quando
Linhares faleceu em 1812, a Corte do Rio de Janeiro sentiu um vácuo.
Desaparecera o estadista que fora um criador notável e um excepcional
dinamizador. Depois virá a administração mais lenta de Araújo (Conde da Barca)
até 1817, data da sua morte. E depois, o governo burocrático e jurisdicista de
Vilanova Portugal, que se assemelhava a um desembargador arcádico do tempo de
Dona Maria I.
Desta ou daquela forma, o fecundo critério unificador de Linhares
prevaleceu. Tal impacto teve sem dúvida esse critério, que o «império do Brasil»,
a princípio concepção de um notável teorista como foi Silvestre Pinheiro Ferreira,
se transformou numa realidade. Por isso, o Império do Brasil começou de fato em
1808, e não em 1822. E isto porque o Rio de Janeiro, sede da Monarquia lusitana,
adquiriu prestígio internacional mercê da ação de Linhares. O polos dessa política
internacional serão, desde logo, a Guiana francesa e o estuário do Prata.
Imaginemos, por um instante, só para argumentar por absurdo, o que teria
sido o destino de Portugal e do Brasil, se o Príncipe Regente houvesse sido
aprisionado em Lisboa pelos franceses de Junot e levado, como os
Bourbons espanhóis, para um exílio de Valençay. Sem dúvida alguma, se tal
houvesse acontecido, a independência do Brasil se teria feito doutra forma. Em
suma, no enquadramento geral dos acontecimentos políticos, tanto metropolitanos
como ultramarinos, o imprevisto lançaria seu lêvedo perturbador. Felizmente, nada
disso acontecera porque, no subconsciente político da Corte de Lisboa, já andava a
ideia da transferência da Corte para o Brasil. Dom Luís da Cunha, o grande
diplomata, em 1735, industriou Dom João V a residir no Brasil, e argumentou da
seguinte maneira: «Mas onde bate o ponto é aqui: não pode El-Rey manter
Portugal sem o Brasil, enquanto que para manter o Brasil não carece de Portugal:
melhor é pois residir onde está a força e abundância, do que onde é a necessidade
e a falta de segurança.» Em 1803 Silvestre Pinheiro Ferreira aconselhou o Príncipe
Regente a «procurar quanto antes nas suas colônias um asilo contra a hidra então
nascente, que jurava a inteira destruição das antigas dinastias da Europa».
Assim, ao fragor das guerras napoleônicas Portugal não morre, renasce; e o
Brasil surge como um espanto do novo, como uma afirmação de riqueza e também
de consciência nacional unitarizada pela ação da Corte portuguesa no Rio de
Janeiro. Cria-se, pois, um Império em proporções físicas gigantescas e em
extraordinários lineamentos políticos com o destino esplêndido de perdurar. A
Monarquia será não apenas o equilíbrio político; será a unidade consciente,
pensada e repensada por todos os brasileiros. Será o milagre da unidade brasileira,
vasada na comparação admirável de Nabuco, quando, em seu Balmaceda, ele
afirmou que, no tempo do Império, tivera a resistência e a elasticidade da seda que
a Monarquia «como uma poeira doirada, tirou de si mesma e suspendeu entre a
selva amazônica e os campos do Rio Grande».
A Corte no Rio de Janeiro não se deixa embalar pelos amavios tropicais. Ela
realiza uma política de afirmações. Por isso, a conquista da Guiana francesa em
1808 foi uma resposta direta do Governo do Rio de Janeiro à pilhagem, matanças
e despotismo que as tropas francesas faziam em Portugal, comandadas por Junot,
Soult e Massena.
Quanto ao Prata, da mesma forma foi a política do Rio de Janeiro uma
política de firmeza. Vejamos a traços muito rápidos os motivos causadores dessa
política de firmeza. Buenos Aires reconhecera a independência do Uruguai,
proclamada por Artigas. Tropas portuguesas haviam entrado na Banda Oriental do
Uruguai, porque a fronteira Sul se encontrava sobressaltada por guerrilhas,
correrias, tropeadas de gaúchos, instabilidade administrativa e política. Depois do
armistício assinado em 26 de maio de 1812 por Nicolás de Herrera e o coronel
João Rademaker, as tropas portuguesas se retiraram. Contudo, Buenos Aires
voltou às hostilidades com Montevidéu. Era propósito evidente de Buenos Aires
obter a incorporação do Uruguai ao território das
Províncias Unidas do Rio da Prata. Artigas e Rondeau, que continuavam a sitiar os
espanhóis em Montevidéu, comandados por Vigodet, obrigaram-nos a render-se
em 1814. Os vencidos retiraram-se para a Europa. Artigas, que batera os
destacamentos de Buenos Aires, proclamou-se chefe dos orientais.
Os orientais haviam desrespeitado o armistício de 1812. Foi então que o
Príncipe Regente, depois de haver feito sondagens diplomáticas em Londres e
Madri, para as quais muito contribuiu a atuação de Palmela, o famoso diplomata
português, tomou em 1816 a decisão de ordenar a invasão da Banda Oriental pela
Divisão de Voluntários reais sob o comando do General Carlos Frederico Lecor,
depois Barão e Visconde de Laguna. Reconheça-se que Artigas enfrentou as tropas
portuguesas e brasileiras com denodo nas batalhas de San Borja, Ibiraocai,
Carumbé, índia Muerta e Catalán. Lecor entrou em Montevidéu em 20 de janeiro
de 1817. Mais tarde, o Conde da Figueira, Capitão-general da Província de São
Pedro do Rio Grande, atacou Rivera em Tacuarembó, derrotando-o
completamente.
Incorporada a Banda Oriental ao Reino de Portugal, Brasil e Algarves, a
administração nela exercida por Lecor foi modelar. Juan Zorrilla de San Martin, o
historiador uruguaio, afirmou: «Porque justo es reconocer aqui que la dominación
portuguesa de once anos no tuvo en Montevideo los caracteres de la porteña de
alguns meses: fué inteligente. Todos los esfuerzos fueron hechos, aunque en vano,
por cimentar la conquista en las simpatias de aquel pueblo: se respetaron las leyes
y las costumbres; se conservaron en sus puestos los funcionários civiles
nacionales, y aun muchos militares; se ofrecieron prêmios, condecora-ciones
reales, títulos nobiliarios; el mismo Lecor, como hemos dicho, contrajo
matrimonio con una dama patrícia del país». (La Epopeya de Artigas, vol. II, pág.
262).
Também no campo das relações internacionais, a Corte do Rio de Janeiro
teve de arcar com as pressões da diplomacia inglesa, representada por Lorde
Strangford. Os tratados assinados com a Inglaterra em 1810 (o de aliança e
amizade, o de comércio e navegação e o dos paquetes britânicos) feriram a
dignidade nacional, porque foram arrancados à custa de muita pressão. Strangford
chegou ao ponto de tratar com grosseria o Príncipe Regente, que se queixou
oficialmente ao Rei Jorge IV. Escandalosa concessão foi a do Juiz conservador da
nação inglesa para cuidar do processo de interesses pertencentes aos Súditos
daquela nação, concessão feita por Portugal sem reciprocidade alguma; e, mais
que isso, conservada no art. IV do tratado de 17 de agosto de 1827 e só corajosa e
dignamente abolida pelo aviso de 22 de setembro de 1832, enviado por Honório
Hermeto Carneiro Leão (o futuro Marquês de Paraná), Ministro da Justiça, ao
fraco Bento da Silva Lisboa, Barão de Cairú, Ministro dos Negócios Estrangeiros.
É claro que a diplomacia inglesa protestou; mas, cessou para sempre essa forma de
«direito capitulatório». Pela lei de 16 de dezembro de 1815
o Brasil foi elevado à condição de Reino
Unido ao de Portugal e Algarves. O Brasil adquiria, pois, consciência da sua
unidade, bem como da sua missão a ser cumprida no mundo.
O diploma legal de 1815 nada mais fazia que reconhecer a existência de uma
situação de fato, situação político-administrativa que se iniciara em 1808 com a
chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. O Brasil adquiria um estatuto de
autonomia completa, porquanto o governo do Império lusitano estava no Rio de
Janeiro. Portugal era, nessas condições, uma dependência do Brasil, onde se
encontrava todo o aparelho político-administrativo do Império lusitano.
Em Waterloo desfizera-se o império de Napoleão. A Paz de Viena
restabelecera a legitimidade dos soberanos recolocados em seus tronos pela Santa
Aliança; revigorara o «direito divino» dos monarcas; restaurara uma política de
obscurantismo governamental e cultural; e — o que era importantíssimo — se
empenhara, a princípio indiretamente, e depois diretamente pela ação de
Matternich, em obter o retorno de Dom João VI, monarca de pleno direito após o
falecimento de Dona Maria I no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1816, contanto
que acompanhado de todos os seus ministros, isto é, do seu governo.
Evidentemente com essa manobra política iria o Brasil perder, de súbito, muito
prestígio político e internacional.
Portugal era governado pelos processos drásticos do general inglês
Beresford. Por isso, lavrava o descontentamento nas fileiras do exército português.
Daí a conspiração de 1818, que representou o sacrifício do general Gomes Freire
de Andrade, da mesma família do grande administrador do Brasil no século XVIII,
Gomes Freire, o Conde de Bobadela, e apresentado com Dom Miguel Pereira
Forjaz, membro do governo de Lisboa, e já em aberta desinteligência com o
general Beresford .
Quando Beresford partiu para o Rio de Janeiro para justificar-se ante Dom
João VI, ocorreu em 1820 a revolução no Porto. Os oficiais ingleses receberam
ordem de retirar-se de Portugal; e Beresford ficou impossibilitado de desembarcar
em Lisboa. O governo duro de Beresford terminara melancolicamente.
A revolução no Porto, de 24 de agosto de 1820, além de haver representado
um golpe mortal no prestígio dos militares ingleses que ainda governavam em
Portugal, teve outras conseqüências: nomeou-se nova regência; convocou-se uma
assembléia legislativa para cuidar de redigir nova constituição; e uma onda
orgiástica de liberdade, falsamente compreendida, varreu o velho Reino,
suscitando desordem bem como deturpações liberalísticas.
Foi em 17 de novembro de 1820 que chegaram ao Rio de Janeiro, com o
brigue Providência, saído de Lisboa em princípios de setembro,
as primeiras notícias do movimento ocorrido no Porto, bem como das medidas
tomadas pela Junta de Governo de Portugal. Mas, somente a 11 de novembro
chegaram ao Rio de Janeiro as notícias a respeito da vitória completa da revolução
em Portugal.
Conta Varnhagen, na sua História da Independência (edição do Instituto
Histórico, de 1917): «El-Rey achava-se na lagoa Rodrigo de Freitas, quando
avistou fora da barra o correio, e voltou logo para a cidade, onde recebeu a notícia
à entrada da noite. Não tardaram a vir aportando outros navios, portadores de
cartas e de jornais e impressos, repassados de sentimentos exaltados, e que eram
lidos com avidez, especialmente pelos oficiais da tropa, então em número na
capital, onde desde pouco se achava parte da divisão dos Voluntários de El-Rey».
Disseram os Goncourts que «l'Histoire est un ronan qui a été». A História
pode vir a ser uma série de sortilégios, se o historiador procura o avesso dos
acontecimentos. Assim, no desenvolvimento de todos esses fatos que interessaram
vitalmente ao Brasil, os fados bafejaram o destino do Brasil, porque a revolução
de 1820 lhe abrira uma nova era como afirmara Varnhagen, «se não adere a ela,
fica separado em Estado independente; se adere e consegue proclamar também as
novas instituições, era mais seguro que não se havia de dar ao trabalho de se
libertar do jugo do antigo sistema de Governo, para voltar ao jugo maior e mais
humilhante do estado colonial, de que aliás já se libertara com a vinda da Corte».
Assinalou Araújo Carneiro (Visconde de Condeixa), diplomata português, em obra
publicada em Lisboa em 1822, Brasil e Portugal ou reflexões sobre o estado atual
do Brasil: o Brasil emancipou-se em 1808 como Reino e depois que Dom João VI
se fixou no Rio de Janeiro, circunstância esta, aos olhos dos europeus, que deu
mais consideração ao nome português através do mundo.
Inglaterra e Áustria batem-se pelo regresso do Rei a Lisboa, o que ocorrerá
em abril de 1821. Portugal reconquistara prestígio com a chegada de Dom João VI
à velha capital. Mas, era evidente que o Brasil não poderia voltar à situação de
colônia. Foi nesse erro que perseveraram as Cortes de Lisboa por intermédio das
suas figuras liberais mais representativas. Contudo, com o regresso de Dom João
VI a Lisboa iria verificar-se no Rio de Janeiro uma espécie de vácuo de poder.
Apresentou-se por conseguinte o dilema: ou Dom João VI confinaria no Rio
de Janeiro, e neste caso o Reino do Brasil continuaria unido ao de Portugal e
Algarves; ou, partindo o Rei, os destinos do Reino do Brasil teriam de seguir
desassombrado caminho para a independência total de Portugal.
Criou-se então um compromisso, uma espécie de manobra dilatória: o
governo do Brasil ficaria entregue ao Infante Dom Pedro, filho mais velho de
Dom João VI, como Príncipe Regente.
A solução era transi- tória, porque Dom Pedro poderia ser chamado a Portugal
para ocupar o trono português por falecimento de Dom João VI;
ou então poderia regressar a Portugal
por qualquer outra razão de Estado. Ademais, a Rainha Carlota Joaquina e seu
filho mais novo, o Infante Dom Miguel, colocaram-se à testa da corrente
absolutista, que não reconhecia a Constituição jurada por Dom João VI.
As Cortes de Lisboa ordenaram a presença de Dom Pedro na capital
portuguesa, manobra que teria o propósito de deixar o Brasil sem um chefe de
prestígio e abrir assim o caminho para a recolonização.
Aconteceu que Dom Pedro não procedeu com o espírito de bonomia ou de
tibieza de Dom João VI, porque ele próprio abriu a luta com as Cortes de Lisboa,
que exerciam coação sobre a personalidade do monarca. Dom Pedro respondeu
que não regressaria a Portugal para atender à imposição das Cortes.
Configurarase, por conseguinte, a situação prevista por Hipólito José da Costa, em abril de
18.20, no «Correio Brasiliense»: — «Todo o sistema de administração está hoje
arranjado por tal maneira que Portugal e o Brasil são dois Estados diversos, mas
sujeitos ao mesmo rei; assim a residência do soberano em um deles será sempre
motivo de sentimento para o outro, a não se fazer mais alguma coisa. Nestes
termos, a mudança de El-Rey para a Europa trará consigo a mudança do logar dos
queixosos, mas não remédio dos males...»
Batem-se Inglaterra, Áustria e também depois a França pelo regresso de ElRey a Lisboa,
mas a Inglaterra o faz desde 1814, dando apoio ao «partido
português» existente no Rio de Janeiro, do qual participavam importantes figuras
da nobreza, como Palmela e outros. Palmela sempre pensava à moda européia,
ademais de anglômano; e quando chegou ao Rio de Janeiro para assumir a pasta
dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, para a qual fora nomeado três anos antes,
apresentou ideias ao monarca num papel de 5 de janeiro de 1821, e que foi
quadradamente refutado por Tomás Antônio de Vilanova Portugal, o conselheiro
íntimo, o Geheimrat de Dom João VI. Palmela entendia que Dom João VI
precisava ser rei de Portugal para conservar o Brasil. Em seu papel de refutação,
Tomás Antônio foi claro e preciso:
«Li com a maior seriedade o parecer do Conde de Palmela; mas
nem posso mudar dos princípios com que já expus a minha opinião,
nem me posso convencer dos fundamentos, ainda que eles são
otimamente explicados. O parecer em substância é que anuncie V.M. já
uma carta constitucional, e que vá o Príncipe real, para presidir às
Cortes, ou governar e fazer cumprir a Constituição dada. A minha
opinião é diametralmente contrária, porque V.M. não se deve sujeitar
aos revolucionários: — não deve largar o cetro da mão. Compete-lhe
conservar a herança de seus Pais até à última extremidade;
não lhe convém aprovar a revolução, e desanimar todo o partido
realista; não lhe é decente seguir os malvados e desamparar os
honrados. Eu jurei isto na aclamação, e já agora hei de morrer fiel ao
meu juramento. Sinto não poder condescender, mas este negócio não é
de condescendências».
Atente-se bem nessa linguagem clara, firme e enérgica para se imaginar que,
tanto em Lisboa como no Rio de Janeiro, as intrigas se enovelavam em torno de
Dom João Vi, procurando obrigá-lo a partir. E com a partida em abril de 1821 de
Dom João VI para Lisboa, os acontecimentos adquirirão um ritmo violento,
infrustável, decisivo.
O monarca deixará o Rio de Janeiro com imensas saudades, porque foi no
Rio de Janeiro que ele se libertou de pressões, de intrigas, de grupinhos que em
Lisboa lhe cercearam a autoridade. Lucock chegou a dizer que na personalidade do
Príncipe Regente transluzia sempre mais atividade e mais energia que nos seus
ministros, — depoimento insuspeito porque o inglês foi um observador sincero e
objetivo.
Mal chegado a Lisboa, o soberano será objeto de incríveis vexames,
monstruosa espionagem e escandaloso cerceamento das suas prerrogativas de
Chefe de Estado. Como prova, a proibição de desembarque imposta aos Condes de
Palmela e de Parati, ao Visconde de Rio-Seco, ao ex-ministro Vilanova Portugal,
ao almirante Rodrigo Pinto Guedes, a Maciel da Costa (depois, Marquês de
Queluz), aos Lobatos, figuras que faziam parte do séquito de Dom João VI. Os
liberais e liberaloides de 1820, juntamente com a maframiúda agitada por
instigadores ostensivos ou embuçados, aspirava a reduzir a figura do monarca a
proporções ridículas, não ocultando os propósitos de dar às Cortes inconteste
primazia na vida política e administrativa do Reino.
A independência do Brasil começou com a chegada da Corte ao Rio de
Janeiro em 1808. Tudo o mais foi decorrência desse acontecimento excepcional.
O Príncipe Regente Dom João, depois Dom João VI, por atos e palavras manifestou
a vontade de governar o Império lusitano, do Rio de Janeiro, assento da sua
monarquia. Nesse propósito perseverou ao elevar o Brasil à condição de Reino
unido ao de Portugal e Algarves. E ao tomar essa segunda decisão histórica, ele
não pretendeu apenas elevar, exaltar e nobilitar o Brasil, tornando-o igual a
Portugal em tudo e por tudo; não, o monarca pensou em muito mais: pensou na
política de contrariar as pressões da Inglaterra, da Áustria e da França, porque a
transferência da Corte para o Rio de Janeiro dera ao Brasil um brilho novo, uma
situação nova, um prestígio excepcional. Quando, a 9 de janeiro de 1822, o
Príncipe Dom Pedro declarou que ficava no Brasil e desobedecia ao chamado das
Cortes, evidenciava-se que se iriam romper os elos que vinculavam os dois
Reinos, reinos em perfeito pé de igualdade política e internacional, podendo-se
dizer que, diante das potências, o Brasil já valia mais que Portugal.
E tanto assim foi que em 6 de agosto de 1822, por iniciativa de José
Bonifácio, o Príncipe Dom Pedro se dirigiu às potências amigas para que
reconhecessem o governo do Rio de Janeiro como o único da monarquia lusitana.
Foi uma tentativa de retardamento do inelutável. Depois, veio o Sete de
Setembro.
III
AS CONSEQÜÊNCIAS INTERNACIONAIS
As Cortes reagem violentamente. Fernandes Tomás, Silva Carvalho e outros
pretendem a divisão do Brasil em governos regendo pequenas unidades territoriais,
dependentes de Lisboa, bem como a extinção de todos os tribunais e escolas e a
chamada ao Reino dos juízes então em exercício no Brasil, cerca de 2.000,
segundo cálculo de Nicolau Vergueiro. A independência do Brasil, consumada no
dia 7 de Setembro de 1822, lançara Portugal na perplexidade e no caos econômico.
Da noite para o dia a imponente fachada do Império lusitano apresentara uma
fratura visível, que denotava desunião, desmoronamento, desgraça.
A Rainha Carlota Joaquina e o Infante Dom Miguel alçam-se contra a
autoridade de Dom João VI. O Portugal tradicional, o Portugal histórico, ante
tantos desastres, levanta-se contra o Portugal liberal e estrangeirado pela influência
de ingleses e franceses, fossem diplomatas, mercadores, banqueiros ou políticos.
Dom Miguel e os absolutistas revoltam-se no movimento fracassado da
«Abrilada». Dom Miguel é desterrado para Viena d'Áustria e a Rainha Carlota
Joaquina para a quinta do Ramalhão. O Conde de Amarante provoca um
movimento de rebelião em Trás-os-Montes, sendo derrotado.
Às graves inquietações políticas ajuntam-se os desastres econômicos e
financeiros, porque às súbitas, desfalcado do Brasil, o Império lusitano sente a
pobreza, e a desordem lhe bater às portas. O drama político prolongar-se-á mais
tarde na guerra civil entre os liberais e os absolutistas, isto é, entre os irmãos, Dom
Pedro e Dom Miguel. Resultado dessa guerra civil será a matança de uns 10 a
20.000 portugueses por portugueses, os campos de batalha ardendo em fogo,
Portugal invadido por mercenários estrangeiros, ingleses e franceses, e a miséria
de um povo inteiro que assiste ao desaparecimento do Portugal «histórico», ou do
Portugal «velho». A respeito dessas lutas fratricidas a bibliografia histórica é
abundante, mas também a espelhar profundos ressentimentos que a crítica
histórica bem intencionada não conseguiu apagar até hoje.
O Brasil cuidou, como nação independente, não apenas de aparelhar-se
internamente, mas de projetar-se internacionalmente por meio
da ação diplomática em prol do seu reconhecimento pelas demais potências do
mundo.
Mal se iniciara a luta entre o Príncipe Dom Pedro e as Cortes de Lisboa, o
governo do Rio de Janeiro despachara para a Europa dois enviados especiais, dois
ambassadors-at-large, como hoje se poderia dizer, homens de confiança do
Príncipe Dom Pedro e que foram o marechal Felisberto Caldeira Brant, mais tarde
Marquês de Barbacena, sediado em Londres; e o Comendador Manuel Rodrigues
Gameiro Pessoa, nascido em Salvador, depois Visconde de Itabaiana, e que atuara
no Congresso de Viena ao lado de Palmela, para agir em Paris. A missão de ambos
consistira em obter tanto da Inglaterra como da França o reconhecimento do
Príncipe Dom Pedro como autoridade suprema do Brasil, que as Cortes de Lisboa
tentavam menosprezar, diminuir, ignorar e difamar no estrangeiro.
Proclamada a independência; instituído o Império do Brasil;
Príncipe Dom Pedro, Imperador constitucional e Defensor perpétuo do Brasil,
Caldeira Brant e Gameiro Pessoa desenvolverão ação diplomática realmente
notável em prol do reconhecimento do novo Império junto a Canning, que então
dirigia a política externa da Grã-Bretanha. Em Viena, Teles da Silva, depois
Marquês de Resende, e em Paris, Borges de Barros, depois Visconde de Pedra
Branca, e que substituíra Gameiro Pessoa, transferido para Londres, muito
trabalharam pelo reconhecimento do Governo imperial. Hipólito da Costa,. como
Cônsul geral em Londres, era infatigável no seu zelo de jornalista do «Correio
Brasiliense», do qual o último número sairia em dezembro de 1822, e o grande
jornalista faleceria em 1823. Nessa altura apareceram impressos o livro de
Angliviel de la Beaumelle, De 1'Empire du Brésil, considéré sous ses rapports
politiques et commerciaux; o livro L'indépendance de 1'Empire du Brésil,
presentèe aux monarques européens, de Alphonse de Beauchamp; e antes, em
1820, aparecera em Londres o livro do inglês J. Lucock, que residira no Brasil de
1808 a 1818 e apreciara a personalidade de Dom João VI.
Nesse livro de umas 600 páginas Lucock afirmou: «Os destinos da América
austral não podem ser encarados sem interesse pelo estadista e o filantropo. Sem
entrar nas regiões da conjuntura, é fácil reconhecer que nela se levantam
poderosos impérios, que o Brasil já adquiriu entre eles preponderância, e possui
meios de consolidar o seu poder». Palavras proféticas as desse comerciante inglês
que tinha o dom de saber observar com agudeza política nas terras novas do
Brasil.
Quando, a 26 de maio de 1824, José Silvestre Rebelo, Encarregado de
Negócios, foi levado por Adams, Secretário de Estado, à presença de James
Monroe, Presidente dos Estados Unidos da América, obtendo assim o
reconhecimento pleiteado com tanta tenacidade negociatória, a Inglaterra sentiu a
necessidade urgente de entender-se com o Brasil, porque iria expirar o prazo
dentro do qual poderia obter a prorrogação do tratado de comércio de 1810,
quando justamente ,Canning negociava tratados
de reconhecimento e de comércio com a Colômbia, México e Buenos Aires, — e
por isso a Inglaterra declarou a Portugal a resolução de mandar em missão ao Rio
de Janeiro a Sir Charles Stuart a fim de entabular entendimentos para um novo
tratado de comércio. Ora, tal decisão eqüivaleria a um reconhecimento.
Na corte de Lisboa Dom João VI manifestou-se favorável a um entendimento
definitivo com o Brasil, mas para tanto teve de demitir o Conde de Subserra do
cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros, o qual sempre fora francófilo, por
pressão do governo inglês. Foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros
o Conde de Porto-Santo (Saldanha da Gama), embaixador em Madri. Subserra foi
para a embaixada em Madri e Palmela para a embaixada em Londres.
O gabinete português aceitou a mediação do governo britânico para o
restabelecimento das boas relações com o Brasil. Palmela afirmara em 1824 que o
entendimento com o Brasil deveria ser feito na base bilateral e sem a concordância
da Inglaterra, «o que seria da maior conveniência recíproca, e de certo mais
decoroso». Sir Charles Stuart recebeu instruções para se dirigir a Lisboa em busca
de plenos poderes e instruções. Chegou ao Rio de Janeiro a 17 de julho de 1825.
Começou então a negociar com os representantes do Império, Luís José de
Carvalho e Melo (depois Visconde de Cachoeira), Ministro dos Negócios
Estrangeiros, o Barão e depois Visconde de Santo Amaro, e Francisco Vilela
Barbosa, depois Visconde de Paranaguá. As negociações não foram fáceis e
terminaram no Tratado de 29 de agosto de 1825, pelo qual Portugal reconheceu a
independência do Brasil.
Os demais países do mundo foram reconhecendo a independência do Brasil,
sendo que o último foi a Espanha, em 1834.
Passaram-se 150 anos sobre a data de 7 de Setembro de 1822. Natural será
que se faça alguma reflexão pertinente. O que nos causa ainda hoje, não espanto,
mas emoção, foi o fato de o destino do Brasil como nação independente não haver
sido forjado numa guerra de filhos do mesmo sangue contra filhos do mesmo
sangue. O destino do Brasil, «destino de eleição», diríamos, foi confiado à
percepção vigilante de estadistas e diplomatas que, sob o comando de José
Bonifácio, souberam desmanchar intrigas, remover obstáculos dialéticos,
estabelecer normas fecundas de ação, e construir para o futuro. Ocorre-nos aqui
recordar conceitos de Husserl, o filósofo fenomenologista. Eis o que ele disse: o
Presente, enquanto recebido pelo passado, vale como retenção; mas, enquanto
avança para o Futuro, o faz de braços abertos («mit offenen Armen sozusagen»).
Assim fez o Brasil através de 150 anos, caminhando para o Futuro de braços
abertos, porque confiante no seu destino histórico de nação nascida como Império,
abeberada numa Tradição velha, peninsular e atlântica, e a avançar pelo tempo
adentro como um império construído pela vontade de um povo jovem, confiante e
essencialmente democrata. O que se fez em 150 anos de vida independente abre
projeções gigantescas para o futuro e inspira por certo um hino de grandeza
simples e comovida para agradecer a Deus o que Ele deu ao Brasil.
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO IV - JULHO/SETEMBRO - 1972 — N.º 13
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