domingo, 25 de setembro de 2016

O LIVRO DA VIDA TODA


Qual o tamanho de uma paixão?
O tempo da juventude ou a vida inteira?
A juventude é o tempo do primeiro encontro,
Quando tudo se inicia.
Tempo que a vida não nos dará mais tarde.
Olhar com encantamento...
Prolongar o primeiro encontro,
Passar o dia todo lendo,
Ler nas caladas da noite,
Sozinho,
Viajando por mundos
Nunca dantes navegados
Nunca dantes sonhados,

Grandes, Sertões, Veredas.

Apaixonados pelas Letras

IT’IS ONLY WORDS

           O som dos Bee Gees. São só palavras, mas é com elas que eu ganho a vida. Demorei a me alfabetizar, mas depois que aprendi a escrever gostei, e gostei cada vez mais até viciar nas palavras, especialmente as escritas. Gostava de aprender palavras novas, de soletrar, de saber exatamente a acentuação.
Uma vez chegou lá em casa um caminhão de sucatas da firma em que o meu pai trabalhava. Nossa casa tinha um grande galpão que servia de oficina de marcenaria do meu pai e às vezes de depósito. Vieram uns cadernões nos quais se escreviam livros razão e livros caixa e de atas, talões de pedidos e notas fiscais. Tudo coisa antiga, mas sem uso, de mais de trinta anos, possivelmente dos anos 1930 a 1950. As notas e talões viraram excelentes blocos pra gente rabiscar, desenhar, fazer contas e tudo o mais. Já os livros encadernados de papel de excelente qualidade atraiam a boa caligrafia. Minha letra não era lá essas coisas, mas eu gostava de caprichar  usando a caneta tinteiro, presente do meu pai quando terminei o primário. Um servia para fazer trabalhos escolares e noutro passei a escrever uma inusitada história de piratas. Era difícil manter os meus escritos a salvo da sanha assassina e destruidora de letras alheias dos meus irmãos menores. Para o João e especialmente para Íris, a caçulinha, se eu fazia algo com tanto interesse por que eles não iriam me ajudar e se divertir também? Era só eu me descuidar e lá iam eles rabiscar nos meus preciosos cadernos e esquece-los nos sol e na chuva. O livro de piratas era tão bem escondido que nem mesmo sei mais onde está. Perdeu-se no tempo e no espaço, foi pro beleléu e a história nunca se acabou... bem, não tenho muita certeza. Esses tais “Piratas do Caribe” me soam tão familiar...será que...não, impossível. Hahahhha!

          Eu sempre gostei de escrever em cadernos encadernados, esses de capa dura. Tenho vários, cheios de poesias, discursos, crônicas...e letras de músicas que eu gosto de cantar me acompanhando no violão. Dois deles também foram severamente mutilados por outra criancinha encantada pelas letras que eu fazia - Patrícia, minha filhotinha e legítima herdeira de minha  devoção. No entanto os frangalhos dos cadernos e mais as muitas anotações garatujas que ela fez nos outros são marcas indeléveis da paixão dela pelas letras manuscritas. Ela tem uma bela caligrafia e muitos cadernos desde a infância. Quando foi para o colégio interno comprei para ela, na livraria da Travessa, um lindo note book, de folhas brancas. A metade escrevi com caneta Mitsubishi uni ball preta, os pensamentos mais preciosos para mim, pela beleza, pela poesia, pela sabedoria. Pati escreveu alguns e me deu de volta pra eu ler e escrever mais.

Uma cidade Portuguesa no Rio da Prata

Colônia do Sacramento

Essa cidade foi fundada pelos portugueses na época da União Ibérica, de
1580 a 1640, quando Portugal e suas colônias estavam sendo governados pelo
rei de Espanha Felipe II. Quando os portugueses tiveram um novo rei, os
espanhóis tentaram desalojar os portugueses de lá, mas eles fincaram pé, e
estabeleceu-se que eles podiam ficar. Contudo, em 1750, pelo tratado de
Madri, os portugueses cederam a Sacramento aos espanhóis em troca dos Sete
Povos das Missões e otras cositas, ou seja, metade do Rio Grande, Santa
Catarina e Paraná. A cidadela foi sendo remodelada pelos espanhóis,
adquirindo uma configuração mista; um projeto parecendo Parati, com
edificações espanholas, ou base portuguesa e teto castelhano. Uma coisa.
Também não foi tão conservada e sofreu mutações ao longo do tempo. No
entanto, ainda restam um portão e uma face das muralhas, com alguns canhões
setecentistas.
A cidade em volta é bem típica portenha, o rio da Prata tem aquela coloração
marrom, e as praias parecem as da lagoa dos patos. Há uma linha de barcos de
passageiros para Buenos Aires, daqueles que levam ônibus, caminhões  e tem
até um freeshopping dentro. Buenos Aires está cerca de 50 kms.
A estrada para colônia do Sacramento é muito boa e tem uns retões
arborizados, dos dois lados, às vezes de eucalipto e outras de palmeira
yatay. Nunca tinha visto uma estrada como essa, com palmeiras cerrando fila
dos dois lados, cerca de vinte metros uma da outra, por dezenas de
quilômetros. Pena que estão duplicando, e fazendo autopista. Para fazer isso
tem que arrancar as árvores. 

MEU PRIMEIRO LIVRO

O livro das ovelhas


Eu lembro de um livro, desde a minha primeira infância, no tempo em que meu pai cuidava de uma fazenda em Camaquã. O livro das ovelhas. Era um livro de veterinária, distribuído pelos fabricantes de uma marca de creolina, que meu pai ganhou nos tempos em que foi interno no colégio agrícola, em Pelotas. Capa dura, cheio de ilustrações desenhadas e algumas fotos de animais. De vez em quando eu via meu pai estudando nesse livro, e eu mesmo sempre que podia o estudava também, de maneira respeitosa e compenetrada, como convém a um menino de cinco anos. É claro que se fosse de outra forma me esquentariam a bunda e eu nunca mais poria os olhos naquelas figuras que me fascinavam.

            O próximo livro a me fascinar foi a Bíblia que minha mãe ganhou de uma senhora adventista. O livro de capa preta tinha duas colunas de letras em cada página e eu não sabia ler nenhuma. Tinha oito anos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

CONVERSA COM MARIA

14/1/85


Não
Não quis falar à Maria
O que eu tinha para viver

A ela eu nego o que digo
E não digo o que quero
Nem ligo

Saí a cavalo para o combate
Que me esperava nas ruas
E dei de cara com as tuas pernas nuas

Num instante  eu me esqueço
Isso não tem começo
Só fim

Já foi o tempo do meu encanto
E num canto penso lento
A hora da nossa morte
Alma e corpo num alento
Divagam
Mas não tanto
Que eu já não tento

Diz da vida quem não vive
-       A vida é curta

Curte a vida e velho fica

E vê o que te vivifica

E no meu corpo já não tenho marcas
Que não sejam cortadas por outras cicatrizes
Que o ferir humano é sempre o mesmo sofrer

Mas não ligo

RECUERDOS

                                         julho 85

Dos tempos passados guardei sementes
E de vez em quando
                    quando  me ouves
Planto de novo e vejo crescer
Meus sonhos desfeitos
Esperanças perdidas
Pouca valia...

Mas
Às voltas com o mundo    
 Que como mate
Embora amargo não se dispensa
Um cachorro guaipeca
Um jipe de plástico
Uma marca no rosto
Um mato de acácias
Aquece o viver lembrar
E contar vislumbrando
O guri gaúcho que sou

E aos poucos em teus braços
No teu colo desato
Os laços da memória
E com eles teço recuerdos
De coisas que fui e hoje são

Posse secreta de minh’alma

FORA DE LUGAR


Teatino
Morre na rua sem Deus
                              Teto
                              Destino
Um sem Marca
               Caminho
               Regresso
Desempregado
Falido
Arrasado
                         Franzino
                         Faminto
                         Febril
                                          Bastardo
                                          Negrinho torto

Que não tinha Coisa
                         Vintém
                         Amor

                                          Nem onde cair



SOLIDÃO ESTÁ NA RUA

Solidão é ansiosa e cala
Sente medo e fica
Meditando
Existe uma queixa muda
Pega o silêncio e escreve
Mas lhe é negada a vitrine
Ou palavra que rime

Solidão tem insônia
E se mexe na cama
Ao lado a desesperança
Do que ela queria quando moça
No quarto, o cheiro
De todos os desejos abortados

Abatida e com olheiras
Ronca de porre
E de boca aberta
As decepções moeram-lhe o corpo
E a alma
Secura pelo que poderia ter sido
Se soubesse a tempo

Sem testemunha
Solidão cai da janela
O peso dos anos e os trancos da vida
Atiram-na do sétimo andar
Ontem foi seu aniversário
Os vizinhos informaram:
        Ninguém foi vê-la
O porteiro informou:

        Ninguém veio velá-la

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

SONETO DA MULHER AMADA



Nos caminhos do teu corpo
Me procuro embevecido
E me encontro semimorto
De tudo o mais já esquecido

No carinho dos teus braços
Estendo meus sonhos esperados
E nada quero perder
Desses gestos encontrados

Mulher encanto ou encanto de mulher
Que mais que um sonho é um sentimento
Mais que a carícia é o próprio carinho

Você é o Paraíso e não só a maçã
É o mundo encantado e a própria fada

Caminho de flores na minha jornada

POETA DE EFEMÉRIDE

Vai a estrela outra
Guia dos meus passos
Luz dos meus dias

Incendeia minh’alma que desbota
As cores velhas da tristeza

Ergue meus sonhos tão alto
Que de tão altos

Já não posso mais olhá-los

Condenei-me a ser poeta de efeméride
A fazer versos alegres, apaixonados
E a engolir a angústia bruta e burra
Do mediano cotidiano

Condenei-me a ser medíocre
A sofrer um pouco, disfarçando
A não chorar as ausências
E a fingir não querer  querendo

Por onde será que anda a minha alegria?
Onde enfiei a auto estima
E a segurança que me faziam brilho?
Aonde foram parar as minhas asas
Que eu nutria de liberdade e ambição?

Cada dia sei mais que te amo
Cada dia sei mais que te quero
E posso dizer isso sem medo
Com a liberdade com que me entrego a esse amor
  
A felicidade vem rolando
Como a água de um riacho
Calma e regularmente entre as pedras
Avolumando-se
  
Minha estrela
Me diz um bom dia  que hoje o Sol não apareceu

Vem fazer dia na minh’alma  vazia

LUAU NO RIO ARAPIUNS

      
A tardinha deixamos a aldeia de Urucureá. Na água imagens douradas das coisas dos homens e da floresta: tamanduá, reflexo de um cão que se alongava, doble barco,  árvores que se retorciam como enfeites natalinos, o jardim aquático do Igarapé, como uma pintura de Monet.
A itaúba deslizou mansa.
Sobre o teto da embarcação degustei o ar crepuscular em largos sorvos contemplativos:
a densa floresta nas margens e o espelho negro das águas do braço do rio Arapiuns.
Um clarão sob as nuvens na margem esquerda anunciava o nascer da lua cheia, logo após avistada a primeira estrela.
No grande rio descortinamos o cenário planetário.
Lua, luz negra prateando a escuridão, o sons da mata, o som da água.
O comandante Rios espetou a proa do Esperança II numa pequena praia em forma de ferradura. Céleres catamos lenha. Em pouco tínhamos uma fogueira. Ao lume estendemos cangas e iniciamos a cantoria.
A lua, a estrela da noite, bem bancava a prima-dona, escondendo-se no cortinado esperando aplausos para tornar a aparecer. Então incendiava os ares dançando com seus véus.
À  argêntea luz subiram nossos uivos.
Noite alta o banho de lua. A tepidez da água, o ar suave da noite. Mãos quebrando o espelho lunar. Eu lunático. A voz, os sons da floresta, tambores, o córdio bater amplificado. A respiração dos botos como muitas pessoas nadando em silêncio.
Sensação de ser, pertencer...



Nestor - Rio Arapiuns, Pará - Julho de 2003

itaúba - madeira da qual são feitos os barcos na amazônia
argêntea -  a cor da prata
córdio - músculo cardíaco, coração