Cheguei a Covent Garden com um misto de curiosidade, fascínio
e reverência. Estava abastecido de informações sobre a fabulosa casa de
espetáculos da Bow-Street em Londres. Construída no século XVIII, no local de
um antigo convento, para se representar o drama e a tragédia, foi consagrada à
ópera na época Vitoriana, na segunda metade dos anos mil e oitocentos, passando
a se chamar Royal Opera House. Meu olhar foi imediatamente capturado pelas seis
colunas com capitel coríntio. Que prédio formidável, pensei eu, que magníficas
linhas, quanta sobriedade... Uhh! Acho
que um construtor de gaiolas de passarinho deixou suas marcas por aqui. Há quem
não concorde com acréscimos de vidro e aço, mas essa parece ter sido a paixão
dos arquitetos europeus no final do milênio. Todavia, não é mais a pedra o
material nobre das construções, e as armações transparentes parecem dizer que
estão ali para contrastar, para realçar ou mesmo emoldurar o antigo e admirável.
Em Covent Garden não construíram uma
pirâmide, como no Louvre, mas alguma coisa circular, que me lembra uma rosácea
ou mesmo aqueles barcos miniaturas dentro de uma garrafa, ligando a um novo
prédio de paredes lisas, em forma de
cubo, com heliponto em cima.
Adentrei reverente, afinal estava em um dos mais famosos
templos, consagrado às expressões máximas das artes cênicas e da música. Dei
uma alisada no terno, olhei para os sapatos, passei o bico na perna da calça
para tirar uma poeirinha, senti o nó da gravata e conferi os botões do casaco.
Era cedo ainda, mas entreguei o bilhete a uma jovenzinha ruiva, de uniforme,
que me pediu para segui-la até meu lugar na plateia. Não a acompanhei, fui
entrando devagar como um noivo, olhando tudo com admiração e pisando com
cuidado no carpete macio. Ela parou no
meio e me esperou sorrindo com simpatia. Devia estar acostumada com o deslumbre
de tantos turistas com a suntuosidade da sala. Quando cheguei à minha poltrona,
bem lá na frente, na segunda fila, agradeci e dei uma moeda à garota, mas não
me sentei. Passei a mão no veludo, segurei, e iniciei um passeio demorado com
os olhos sobre a plateia, pelas frisas, pelos camarotes, pelo balcão. Dobrei o
pescoço e apreciei a decoração do teto, o lustre gigantesco, as luzes
cintilando nos cristais. Antes de me voltar para o palco fechei os olhos e me
concentrei no cheiro do lugar. Não precisava identificar, só sentir as notas e
deixar afluírem centenas de memórias que cada fragrância despertava. Reviver
uma antiga experiência, fazer conexões, comparar situações, a emoção de estar
vivendo um sonho. Era um festival de sensações, me despregando do lugar comum,
da aridez cotidiana, da insipidez de dias menos afortunados. Sem abrir os olhos
abaixei o assento e deixei o corpo se acomodar. Com o queixo mais perto do
coração, esperei que passasse o arquejo provocado por um contentamento envelhecido:
o “Lago dos Cisnes”, primeiro espetáculo do menino de nove anos, no teatro São
Pedro de Porto Alegre. Há quanto tempo atrás eu tinha estado naquele lugar
mágico que me fascinara os sentidos e provocara tão intensas emoções?
Admirei a cortina, seus detalhes dourados, a decoração do
palco, tudo lindo. Que noite iria viver
na Royal Opera House! Despertar de um sonho e ainda estar em um lugar
idílico? Foi o que pensei vendo aquele
unicórnio branco do estandarte real no tecido encarnado que cobria a boca de
cena.
Os
músicos da orquestra tomavam seus lugares e se exercitavam com os instrumentos.
A ruivinha simpática me sorriu de novo quando trouxe mais pessoas. As poltronas
foram todas ocupadas. O primeiro violino da orquestra deu três batidinhas com o
arco na estante chamando a atenção dos colegas e solou a nota La. Ouviu-se o
som contínuo da conferência da afinação.
A doxologia da
noite seria Madama Butterfly, de Giacomo
Puccini. Fundamentada no texto do americano David Belasco, a ópera foi
representada pela primeira vez em Milão, em 1904. É a história de Cio-Cio-Sam, uma linda garota japonesa que se
casa com um oficial da marinha americana. O militar não levou a sério o
casamento, considerando-o um passa-tempo enquanto servia no estrangeiro.
Terminado o período de serviço retornou para os Estados Unidos abandonando-a.
Anos mais tarde fica sabendo que tivera um filho com ela. Então decide ir ao
Japão com sua esposa americana para buscar a criança. Cio-Cio-Sam, que sempre
acreditou no amor e no retorno do marido, vê suas esperanças perdidas e, diante
da desilusão e da iminente perda do filho, decide que não vale mais a pena
viver.
Fiquei deliciosamente surpreso com a encenação. Na verdade,
não procurei saber nada adredemente sobre o diretor e a abordagem que faria da
ópera de Puccini. Ao abrir o pano estávamos diante de um quadro do filme “Sonhos”
de Akira Kurosaua, um cartão postal japonês, a tradição nipônica representada
em estilo suntuoso, brilhante como um desfile na Marquês de Sapucaí.
Na
primeira cena o capitão-tenente da marinha americana Pinkerton, acerta com o
corretor de matrimônios Goro, a quem encomendou uma esposa, os detalhes da
recepção e do aluguel de um solar, numa colina de Nagasaki. Então vem o dia do
casamento e chegam os parentes da noiva Cio-Cio-San e convidados. Ao
cumprimentar o noivo, o cônsul americano Sharpless percebe a frivolidade do
marinheiro quando este participa que arrendou a mansão e a mulher por
novecentos e noventa e nove anos, podendo desistir do contrato a qualquer
tempo. Sharpless procura aconselhá-lo, mas Pinkerton desconversa falando dos
Estados Unidos.
A
entrada da noiva é maravilhosa. O oficial, que só a conhece nesse instante, se
excita ao ver que ela tem apenas 15 anos. Os nubentes conversam e Cio-Cio-San
conta a Pinkerton que sua família perdeu tudo, e que agora, casada, se
considera uma mulher venturosa. A festa, porém, é interrompida por um velho
sacerdote, tio de Cio-Cio-San que a recrimina porque ela renunciou as tradições
e a religião de seus ancestrais tornando-se cristã. Ela é então renegada pelos
parentes que vão todos embora.
No
final do primeiro ato, o casal caminha pelo jardim. A despeito de tudo, a recém
casada se diz muito feliz. Observando seus ricos trajes, o andar gracioso e os gestos
delicados, o marido a compara a uma linda borboleta.
Intervalo
de meia hora. Ao passar pelo corredor percebi a dificuldade de um casal de
octogenários e dei a mão a senhora para erguer-se e sair para o corredor. Ela e
ele agradeceram muito e num instante já estavam estendendo a mão e
apresentando-se. De vereda perceberam o sotaque e me identificaram como
brasileiro. Fiquei mais espantando quando ela afirmou que eu devia ser gaúcho.
- Deveras!
– disse eu admirado.
E num
instante o vento Minuano deu uma lufada bem ali no corredor da Royal Opera
House. Estava eu diante de uma conterrânea, Dona Abigail Fontes Vestey,
jaguarense dos quatro costados. O marido, Mr. Gilbert Vestey, cidadão britânico,
mas falando muito bem o português, e de uma simpatia calorosa, estranha aos
ingleses. Bebemos uma taça de champanhe no prédio anexo, que tinha lá seu
charme e utilidade. Eles concordaram rindo com a minha ideia de estar no convés
de um barco dentro de uma garrafa.
Conversamos
animadamente até que o sinal nos chamou para o reinício do espetáculo. Não
haveria intervalo entre o segundo e terceiro atos, por isso combinamos de nos
encontrar no final para mais um drink e trocarmos impressões sobre a ópera.
Gostei tanto dessas pessoas! Voltei para o meu lugar confirmando comigo mesmo
que era uma noite de gala.
Segundo ato. Passaram-se três anos. A jovem Cio-Cio-San tem
um bebê e está em dificuldades financeiras. Tornou-se uma mulher patética, um
arremedo de americana, que se recusa a crer no abandono do marido e ralha com a
sua fiel criada Suzuki que a admoesta a rezar para os deuses de seus
ancestrais.
O
cônsul americano Sharpless, penalizado com a situação da jovem japonesa, vai ao
solar para dar notícias. Nesse instante chega também o corretor Goro trazendo
nova proposta de casamento para Butterfly, uma vez que o abandono pelo marido
permite que se case novamente. Ela não aceita a proposta de um rico admirador
porque acredita que seu marido voltará para ela e para o filho, e serão
felizes. Goro vai embora. Ao saber da criança Sharpless fica surpreso. Mesmo
assim ele procura desiludir Cio-Cio-San, explicando sobre a carta que recebera
dando conta de que Pinkerton casara-se nos Estados Unidos. Não adianta, ela não
compreende. E ainda por cima, interpreta erroneamente, a seu favor, todas as
frases que escuta, e renova as esperanças do breve retorno do seu amado.
No
último o ato se dá o desfecho da tragédia anunciada. A nova senhora Pinkerton
ao saber que seu marido tem um filho decide que irá criá-lo. Viajam para o
Japão, e ela mesma vai encontrar-se com Butterfly e dizer que o levarão.
Finalmente desiludida, com o coração dilacerado, a infeliz repudiada concorda,
mas exige que Pinkerton venha pessoalmente buscar o menino. Quando a mulher sai, Cio-Cio-San manda
preparar a criança, depois veste-se com seu mais fino traje e pinta o rosto e os
lábios. Reencontrando-se com as tradições do seu povo, retira de seus guardados
um punhal, herança do pai, onde lê a inscrição “Morre com honra, quando for
impossível viver sem honra”.
Ao
chegar o americano encontra a mãe de seu filho esvaindo-se em sangue, surpreendentemente
bela.
Quando
a música cessou, os espectadores permaneceram ainda em silêncio por alguns
segundos, que pareceram mais longos. A suspensão inevitável diante daquilo que
nos arrebata os sentidos, como o recuo do mar antes do tsunami. A ofício inebriante
da música e do teatro nos confrontava com a inexorabilidade da terminação de
todos os viventes. E só mesmo num palco, com grandes atores, a morte seria tão
digna. De repente começaram as palmas, intensas desde o início e aumentando, na
medida em que os amantes do canto lírico se punham de pé.
A melhor maneira de amar alguma coisa é pensar que a
poderíamos perder. E eu amei aquele espetáculo, porque ele foi único, porque
foi exatamente daquela maneira a representação, que jamais se repetirá da mesma
forma como um filme, e porque eu poderia não ter estado ali, por opção, por ausência
de conhecimento, ou mesmo pela impossibilidade, por não ser onipotente e
assistir a todos os espetáculos que se representaram nesse palco. Embora a
história seja a mesma, e sempre possa ser encenada, apesar disso, nunca mais
seria como na primeira vez no Royal Opera House.
Depois de oito ou dez minutos de aplausos, aos intérpretes,
ao coro, à orquestra, aos solistas, ao maestro, ao diretor, e flores à soprano
que interpretou Cio-Cio-San, o louvor público cessou, mas não sobreveio mais o
sossego, nem dentro de mim se fez calma. A obra de arte pegou na veia. Eu sabia
que a música sublime de Puccini e toda aquela atmosfera do teatro, da
representação e do canto lírico iria circular e alimentar meu cérebro por
semanas. Comecei a perceber coisas simples como isso de estar limpo, arrumado e
cheiroso – é uma coisa bem agradável – não estar ulcerado, com dor no estômago,
na cabeça ou na coluna. Sentia-me muito bem, obrigado. Ninguém me dava
empurrões enquanto eu saia para o corredor, ninguém me batia, nem me pegava
pela orelha, pelo contrário todos sorriam e me davam passagem. Tinha sido tão
bem tratado, toda a vida. Atinava para o efeito que aquilo tudo encerrava em
minha existência. Continuava aprendendo sobre mim e sobre a natureza humana, de
um jeito aprazível, não como uma besta de carga mourejando de sol a sol em
campos de trabalho rude.
Desde muito novo aprendi com meus parentes que há uma boa
maneira de saber que pessoas vale a pena conhecer através do olhar: aqueles de
olhar vivo. Lá estavam dois pares de olhos sagazes e faiscantes sorrindo para
mim. Se são os olhos as janelas da alma, dentro daqueles arcabouços vincados
pelos anos, estavam duas crianças. Somente elas poderiam ter avistado a minha
também! Mesmo antes que eu me aproximasse, ainda por entre as pessoas que saíam,
seu Gilbert já me interpelou:
- O senhor aceitaria ir à nossa casa? A essa hora, mesmo na
Cosmópolis Londrina, jovens da nossa idade não tem um bom ambiente para jantar
e beber alguma coisa.
Dona Abigail se riu enquanto eu me aproximava e disparou:
– A não ser tomar soro no hospital. Isso a
qualquer hora!
Cocei a cabeça e fingi estar pensando.
–
Prefiro a sua casa. Obrigado! E saímos os três rindo de braços dados,
desfilando pelo tapete vermelho como velhos amigos.
No vestíbulo, uma dona trajando um terninho preto, com ar
competente, abriu caminho entre a multidão e veio ao nosso encontro. Era Sarah,
a assistente do casal. Depois das apresentações ela falou ao celular e foi nos conduzindo
até a rua. Em instantes o motorista
abriu a porta de um Bentley na nossa frente.
- E
eu imaginando se iríamos de taxi ou de metrô! Disse me acomodando ao lado de
Dona Abigail.
Ela
riu e respondeu:
– Os
Vestey, tem mais do que precisam para viver.
- Espere, disse eu, - os Vestey da Vestey
& Brothers?
-
Hãhããã, vejo que o senhor conhece a História! Disse o Seu Gilbert.
A Vestey &
Brothers,
de Liverpool, era uma gigante do ramo da
carne congelada. Em 1921 adquiriu o Frigorífico Rio Grande,
na
cidade de Pelotas, que passou a se chamar Frigorífico
Anglo. A companhia não teve solução de continuidade depois de quatro gerações e
encerrou as atividades em 1988.
- Me perdoem se pareço
alcoviteiro, mas poderiam me contar como se conheceram? Parece que temos aqui
uma “Butterfly” que deu certo?
- Sim, de fato, disse Dona
Abigail. Tenho pena de tantas “Butterfly” que temos neste mundo globalizado.
Outro dia mesmo estávamos acompanhando pelo noticiário o caso de uma brasileira
que veio estudar na Inglaterra. Aqui conheceu um rapaz iraniano e casaram-se.
Ela até parou de estudar e foi trabalhar para ajudá-lo a se formar. Tiveram
dois filhos. Agora ele pediu o divórcio e fugiu para o Irã levando os meninos.
- Ele quer saber da nossa
História, querida, interrompeu o marido.
- Vamos contar durante o
jantar. Por enquanto podemos “dissecar” a ópera, por favor?!
Que maravilha, eu estava
notando aquela altivez bem humorada das pessoas de espírito. Os dois homens
aquiecemos prontamente. Dona Abigail continuou.
- Eu entendo que Butterfly,
deixou de lado sua tradição e sua religião para se transformar no que ela
imaginava ser uma esposa americana. Nesse caso ela estaria cumprindo a tradição
que manda a mulher deixar a casa dos pais e seguir o marido. Mas ela não teve
nenhuma proteção quando ele abandonou-a e depois voltou só para levar-lhe o
filho.
Já que era para jogar o seu
Gilbert rebateu:
- Para mim todas as religiões e culturas com
seus preceitos machistas podem afundar-se nas fossas abissais que eu não dou a
mínima. A pobrezinha foi vendida, seduzida e depois deixada para trás, permanecendo
num exílio voluntário por causa do amor. A figura do Pinkerton é mesmo a de um
canalha.
Dona Abigail aprovou,
aconchegando-se ao marido. Então perguntou a minha visão do texto.
- Creio que o próprio Puccini
nos autoriza a fazer transposições de tempo e espaço, uma vez que na partitura
de Madama Butterfly o compositor determinou a “Atualidade” para o
desenvolvimento da ação. E como no início do século XX o Imperialismo estava em
seu auge, com exacerbação da superioridade da raça branca, e da sua cultura,
sobre as demais do planeta, o texto, apesar do lirismo, deixa margem ao
pensamento crítico, concluí.
- Nesse caso o libreto pode ser
interpretado como um drama passional ou como uma história de colonização e de
perda da identidade cultural, disse Seu Gilbert.
- Perfeitamente, concordei.
E nesse momento o automóvel
parou e descemos na portaria de um prédio de alto padrão, sempre precedidos
pela assistente, que abriu a porta do carro, ajudou-nos a sair, chamou o
elevador. Na cobertura aristocrática,
com vista para um parque com monumentos iluminados, fomos recebidos por duas
empregadas, uma indiana e outra africana. Dona Abigail me apresentou como
convidado e deu as ordens. Durante o jantar, como prometido, o casal contou-me
sua história de amor.
Corria a II Guerra na Europa e
as crianças inglesas eram afastadas dos pais envolvidos no esforço de guerra.
Para ficarem a salvo dos bombardeios, a maioria era enviada para o interior,
ficar com parentes ou famílias de acolhida, bem como em internatos. Os que
possuíam meios enviavam os filhos para regiões sem conflito, especialmente na
América. Os administradores dos frigoríficos britânicos no Rio Grande, no
Uruguai e na Argentina recebiam seus parentes.
Em 1942, a Anglo S.A. iniciou a
construção de um grande complexo industrial, às margens do canal São Gonçalo,
inaugurado em dezembro de 1943. Durante a festa de inauguração, o jovem Gilbert
só tinha olhos para uma princesa da Campanha, por nome Abigail, que era o mimo
do pai, estancieiro de Jaguarão, com invernadas abarrotadas de bois e ovelhas.
O rapaz de seus 15 anos,
gordinho e de cabelos vermelhos já arriscava algumas palavras em português, que
ele se esforçava para aprender.
Descobriu que a donzela estudava no Colégio das Freiras e morava com as
tias em Pelotas. Endereçou-lhe versos:
Vosso
Gilbert descobriu
Abigail
Consultando
estrelas mil
Alguém
nasceu a primeiro de abril.
Pronunciar algumas palavras era
uma coisa, se atrever a escrever em português era ousadia que lhe sairia caro.
Além de desconhecer a língua que é mesmo das mais difíceis, ignorava a
cultura. Se a ignorância sobre a
associação de versos românticos com o dia da mentira já bastava pra espantar a
moça, podia passar sem reprimenda. Não fosse a infeliz coincidência formando o
acróstico VACA, talvez nem tivesse sido expulso debaixo de vassouradas das
criadas e das tias da menina.
Eu ria muito do jeito que ambos
me contavam o caso, atropelando-se.
– Mas era um amor de garota! O
senhor não desistiu, não é mesmo?!
- Absolutamente! Esperei na
saída do Colégio e tanto me expliquei e me desculpei, que ela acabou perdoando.
O caso continuou mais hilariante,
ainda. Sendo convidado para o aniversário de 15 anos, o inglesinho recebeu
autorização de seus tios para ir a Jaguarão.
Como era o costume da Campanha,
o pai fez festa gorda na estância, com carreira, rodeio e fandango. Pra comer,
churrasco de boi e de carneiro em vala comprida, e peru por cabeça. Saúde e
vivas da peonada com barulheira de foguetes e tiros de pólvora das garruchas. E
tudo o que havia de mais hospitaleiro e cordial.
A noite teve baile na cidade, no
salão da Sociedade Harmonia Lira.
A menina adorava dançar e tinha
desembaraço no ambiente social, bem criada que era com professor de música,
pintura, e até de inglês, mesmo sem ser o costume da época. O que se ensinava
para os jovens da classe alta era o francês, mas o pai que via mais longe do
que a maioria dos contemporâneos percebia que a influência dos ingleses e dos
americanos no Pampa só fazia aumentar, movimentando o money. Assim unia o útil ao
agradável incentivando quem sabe a formação de uma futura intéprete para as
melhores negociações com os compradores de língua inglesa.
Ia o baile adiantado, com bela orquestra. A ansiedade da
aproximação tornava o nosso jovem suarento e hesitante. Quando Gilbert tomou
coragem e foi pedir a dança para Abigail estava encharcado dentro do terno de
casimira.
Como convinha, uma moça educada não se negava
e saiu para dançar. Mal acabando quis pedir licença, mas o mancebo insistiu -
mais uma, por favor. Ela então botou-lhe a mão no peito para mantê-lo afastado
e disse:
- Você sua muito!
E o Gilbert se derretendo todo:
- Me too. Eu também vou ser seu my
Darling. E tascou-lhe um beijo.
Nunca ninguém desceu a escadaria daquele clube
tão depressa, na verdade atirado lá de cima pelos primos da aniversariante e
com a ameaça do pai:
- Se eu te pego de novo perto
da minha filha te amarro no palanque e te mostro como é que tourinho vira boi!
O bisonho tinha, como se diz,
colocado a carreta na frente dos bois. Nesses tempos, o primeiro beijo público
de um casal seria diante do altar, após a troca de alianças.
- Nessa altura já estava
pensando que era mais seguro em Londres, debaixo de todo o fogo alemão! Disse o
Seu Gilbert rindo e enchendo minha taça.
Dona Abigail, já coradinha por
causa do vinho, deu sua versão:
- Eu fiquei estupefata plantada
no meio do salão. As pernas me faltavam, mas parecia que flutuava. Jamais
imaginara que o primeiro beijo seria tão intenso. Sentia borboletas no
estômago. Tinham arrastado o Gilbert para fora, e eu ali parecendo uma estátua
de Bellini: a Santa Teresa em êxtase. As amigas vieram me acudir. Saí correndo.
Do alto da escada vi o Gilbert desmantelar-se nos paralelepípedos da rua e
escutei a ameaça trovejante do meu pai. Corri para fora, agarrei-me a ele e
gritei:
- Não faça isso com meu
namorado, papai.
- “There is no second chance to make a first good
impression.” Não há uma segunda chance para se causar uma
primeira boa impressão? Hahaa, isso é uma bobagem. Eu tive mais do que isso,
exclamou meu anfitrião.
Gilbert não voltou para a
Europa. Pediu permissão aos pais para viver no Brasil. Completou os estudos e
casaram-se. Só foram viver em Londres bem mais tarde quando ele assumiu uma das
diretorias do grupo.
Rosácea
– elemento da arquitetura medieval; vitral em forma de rosa sobre a portaria
principal das catedrais góticas.
Arquejo
– palpitação, descompasso no coração.
Doxologia
– na liturgia cristã, o Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Uma
referência à ópera como glorificação da música, do canto lírico, e da
encenação.
Adredemente
– a priori, antes, antecipadamente.
Vento
Minuano – como os gaúchos chamam o vento Sul.
Arcabouços
– estruturas, carcaças, esqueletos.
Cosmópolis
– cidade onde se encontram gentes de todo o mundo.
Bentley
– marca de automóvel inglês luxuoso e muito caro.
Libreto
– programa da ópera, com a história e as letras do canto lírico.
Partitura
– caderno de papel com as linhas próprias para a grafia das notas onde estão
registradas as diversas partes que compõe uma obra musical.
Bisonho
– inábil, inexperiente.