segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

ZÉ MACERA

conto

A pregação pentecostal desde que chegou ao povoado na Costa Doce, catalisou as atenções, dos prós e contras. A Igreja Católica, por falta de vocações, andava fraca das pernas e não cuidava do rebanho que se criava como guaxo, sem conhecer os ensinos, sem ver padre nem comunhão. De tal modo, o pentecostalismo, valorizando mais a experiência do que a tradição, alastrou-se como fogo em capim seco naquelas almas simples.


O Zé Macera, desde o início entusiasmou-se com a Mensagem do Evangelho, e todas as semanas, na hora do apelo, ia para frente entregar o coração a Jesus. Depois de umas sete ou oito vezes o missionário explicou que agora já não precisava mais vir junto ao púlpito, que era só esperar o batismo. Não adiantava. Na outra semana ele esquecia que já tinha aceitado o Senhor Jesus Cristo como seu Salvador pessoal e ia comovido fazer nova entrega.


- Eu renuncio tudo de novo – dizia, mas depois olvidava.


E na verdade deslembrava mesmo, pois, embora forte a carga contrária, não desistia da cachaça e do fumo em rama. Ultimamente estava bebendo e pitando as escondidas pra não ouvir a admoestação dos irmãos. Já não entrava na venda pra comprar, mandava o pequeno Neco, de cinco anos. Naquele tempo vendiam cachaça a granel. O freguês que quisesse levar tinha que trazer o recipiente. O Zé Macera reaproveitava a garrafa de conhaque São João da Barra, sem o rótulo, que é pra ninguém desconfiar.


- Toma Neco, vai lá na bodega e compra meio litro de canha, mas não mostra pra ninguém, recomendou pro piá.


Na volta o gurizinho olhou pela porta da Igreja e viu o pai entusiasmado na oração, gritando Glórias e Aleluias. Resolveu entrar e sentou no banco com a garrafa de água-que-passarinho-não-bebe do lado. Acabada a oração os crentes começaram a reparar e chamaram a atenção:


- Mas o que é isso irmão?


O Zé Macera:


- Mas Neco, meu filho, leva a água sanitária pra tua mãe.


E o Neco muito sério:


- Mas se o senhor mandou comprar cachaça, pai?


Assim o batismo ia se adiando, adiando, que nem visita ao dentista, ou banho em gato.


No domingo havia Escola Dominical. Pras crianças tinha a escolinha, numa sala nos fundos do templo, onde umas senhoras ensinavam as histórias bíblicas.


O Neco e o Joca, as duas crias do Zé Macera, não tinham muita paciência com historinhas sem ação. Quando não havia Sansão enfrentando leão e derrubando as colunas do templo, nem Davi peleando com Golias, eles mesmo iam matar o tempo do lado de fora, quase sempre arranjando encrenca. As professoras da escolinha depois se queixavam:


- Irmão Zé, os seus filhos assim, assim... Irmão Zé, o Neco e o Joca assim e assado...


Não é que a dupla fosse maleva, não, pelo contrário, eram até educadinhos e respeitadores. Era só garotice. Criados meio soltos, os pais lhes davam mais carinho do que limites. Um dia resolveram dar uma lição no cachorro do vizinho da igreja. Este não gostava de desafinação, e toda vez que a fanfarra dos crentes tocava, latia e uivava também. E o os moleques acharam de tacar umas pedras nele.


Aí o dono do cão foi reclamar.


Chamado o responsável pelos pestinhas, quis ele exemplar ali mesmo, na frente da Igreja e puxou de vereda o cinto. Não é que lhe caíram as calças até os pés?


Tinha comprado, de segunda mão, o terno cinza completo, calças, paletó e colete, que usava pra ir aos cultos. De dia com a gola da camisa por cima da gola do casaco, e de noite sempre de gravata. Mas o defunto era maior, por isso o cinto era imprescindível.


A cena ficou mais engraçada porque o Zé não largava a Bíblia por nada pra soerguer as calças e as tentativas foram várias, pra deleite da chusma de gaiatos que tomava pinga na bodega em frente e aproveitou pra chacotear.


Também aquilo de arrancar o cinto, de ameaçar guasquear, tinha sido encenação, pois que nunca batia nos filhos, nem em animais.


Talvez o leitor possa pensar que o Macera era o tipo imaturo, procurando ser aceito se mostrando, querendo aparecer. Não é bem esse o caso. Na verdade o Zé Macera sempre soube bem quem era, e dentro dos limites que a pouca instrução lhe reservara promoveu o seu auto-aprendizado num esforço contínuo de superação e busca do entendimento. Mal sabia ler, ganhava pouco, se vestia com simplicidade e todavia, não era nada inseguro, transpirava otimismo e autoconfiança. Isso porque tinha uma enorme imaginação moral, ou seja, a faculdade, cada vez mais desusada, de se colocar no lugar do outro, de compreender seus sentimentos, perceber suas tristezas e corresponder a suas expectativas. Estampava de maneira simples e direta o conceito de bondade pela prática, no seu trabalho, nas suas relações com as pessoas, com a natureza, e na sua religiosidade.


Num domingo o Zé Macera foi convidado pra almoçar na casa do evangelista. Sentia-se importante ali com a família do pastor e membros ilustres da igreja.


A senhora tirou da geladeira e colocou sobre a mesa uma garrafa desconhecida para o Zé Macera. O pastor que observou o olhar admirado do Zé resolveu caçoar dele.


- O irmão Zé aceita cerveja?


Os olhos do homem se arregalaram imaginando “pois será que bebem cerveja em casa?”


Fez que não, enfático, com a cabeça. “Pode ser um teste pra minha fé, pra ver se eu tô seguindo direitinho os mandamentos.”


A anfitriã serviu a todos, menos o copo do Zé, tampado com a mão. Quando ela soltou a garrafa sobre a mesa o manhoso voou em cima pra ler o rótulo. Demorou pra acolherar as letras, mas por fim exclamou aliviado:


- Quaaa! É guaraná!


Às quintas-feiras à noite os crentes iam ao culto de oração e de estudo bíblico. Depois dos hinos de louvor e das orações, que eram animadas e todos participavam, vinha a leitura e interpretação do texto sagrado por um dos irmãos. A sonolência era inevitável, especialmente para os que levantavam cedo e tinham jornada árdua.


As crianças que eram obrigadas a acompanhar os pais dormiam a sono solto, de se espichar nos bancos, menos a Guadalupe. Essa gostava era de dormir de dia. De noite ficava mais acesa do que lanterna de quatro elementos. E furunga daqui, furunga dali, sempre acabava por tomar uns beliscões de dona Herondina, sua mãe.


Procurando exortar os crentes, o missionário introduziu, nessas reuniões, o estudo de um livro que tratava do fim dos tempos e das aprontações do Capeta para desviar os salvos do reto caminho. E tanto se falava no Coisa-Ruim que o Zé Macera, que era impressionável, tinha pesadelos.


Estava o Zé Macera ferrado no sono, encostado na parede do fundo, de boca aberta, e a danada da Guadalupe, resolveu inspecionar-lhe a dentadura. Notando-lhe a úvula, a campainha ou sineta, naquele ir e vir no palato, resolveu que ia puxá-la. Enfiou a mãozinha com toda a delicadeza e agarrou. O dorminhoco acordou de supetão. Sobressaltado olhou aquela cara grudada na sua e gritou apavorado:


- Para trás Satanás!


O que de ridículo temos, de ingenuidade ou estultícia, na figura do Zé Macera, em nada o diminui como ser humano. O bom conceito de um homem não está em quanto ele ganha, nem no que possui, nem mesmo em quanto estudou, mas em como ele vive, e nas boas ações que pratica em favor do próximo.


Pois olhe que nosso personagem, embora simplório, tinha seu valor em delicadeza e serventia. Jamais relou um dedo em alguém, nem mesmo nos filhos, ou nos cachorros. Educava com conversa e com exemplo. Era honesto e prezava a honra. Jamais comprara fiado, exceto no crediário da loja de eletrodomésticos. Primeiro o fogão a gás, em seguida a geladeira. A televisão veio depois dos estofados. Todas as prestações pagas rigorosamente em dia. Começou a trabalhar ainda gurizão, nas obras da Prefeitura. Com o tempo e o merecimento ganhou estabilidade. Fez o Curso de Manutenção e Limpeza Urbana e foi destacado para a vila onde morava, na beira da Lagoa dos Patos.


O lugar era pouco mais do que uma colônia de pescadores, com algumas casinhas simples dos peões de gado e de enxada que trabalhavam de empreitada nas fazendas em volta. Havia umas poucas residências de capatazes de granjas, motoristas, tratoristas, que eram casas mais aprumadas. Um engenheiro da prefeitura, com visão para o futuro traçou novas linhas de urbanismo, com ruas bem largas, em forma de tabuleiro de Xadrez, e uma área para praça, outra para o grupo escolar e para o posto de saúde.


E assim como foram abertas as ruas pela patrola, ficaram abandonadas, o mato crescendo de novo, serviam de pasto para os poucos animais criados no vilarejo. O funcionário Zé Macera que assistira ao engenheiro, resolveu que iria florestar as ruas para a posteridade e produziu mudas de árvores no seu quintal. Aos poucos foi plantando, nas beiradas, onde seriam as calçadas, e no centro, onde haveriam canteiros, tudo muito calculado, seguindo uma linha bem riscada. Apoiando a sua iniciativa o pessoal das fazendas, a vizinhança, os chefes da prefeitura, enfim, muita gente contribuiu com o plantio.


- Daqui alguns anos isso aqui vai ter um valor danado. O mundo vai esquentar e as pessoas vão querer veranear aqui na beira da Lagoa, dizia em tom profético.


Aplicando os ensinamentos do curso que fizera, o gari, instruiu a população a enterrar o lixo orgânico e a transformar em adubo, e a por pra fora, acondicionado, o lixo industrial e reciclável, que esse ele iria recolher diariamente. Para tanto, treinou um burrão que criava desde tenra idade e que tinha inclusive amamentado com mamadeira. O animal o seguia e obedecia, conforme ele falava. Encomendou na intendência uma carroça de quatro pneus e os arreios necessários, mas dispensou freio e bridão, que isso o animal não carecia. Instruído nas suas obrigações o animal passou a executá-las a perfeição. Seguindo o comando de voz do Macera, parava direitinho ao lado do material a ser recolhido, depois seguia prontamente para o próximo, e assim faziam diariamente a coleta, exceto aos domingos.


Conforme o povoado foi crescendo, com o progresso da agricultura, o incremento da pecuária e a construção das primeiras casas de veraneio, recebeu o posto de saúde e o pelotão da Brigada Militar, que por viver na ociosidade, era reduzido a dois soldados e uma viatura. Instalou-se também a primeira agência bancária, que era na verdade um caixa só, pras pessoas pagarem as contas e receberem os vencimentos.


Pois houve que uma súcia organizou-se pra rapinar tais postos bancários em lugares pequenos, sem muita vigilância, e fugir com rapidez por estradas vicinais. E eram três assaltantes perigosos, muito bem armados, que chacinavam sem compaixão, já dando o que falar nos interiores do Estado. Chegavam de repente, um ficava no carro com o motor ligado e as armas na mão, outro fazia reféns, e o terceiro limpava o caixa e os viventes que estivessem por perto. E em menos de dois minutos já sumiam na poeira da estrada.


Foram bulir no vilarejo. Seguiram a tática. No exato momento em que saía o ladrão com o malote o Zé Macera distraído no afã de seus afazeres, adiantou-se pra pegar o latão de lixo. O malvado lhe enfiou uma coronhada de carabina nos peitos e o coitado voou longe. Pra quê? O burrão avançou com ferocidade pra defender o dono e mordeu o braço do bandido. Não fosse a japona lhe decepava o braço. O elemento se apavorou, deixou cair o malote e a arma. O do carro gritou e começou a atirar. Os reféns apavorados saíram correndo. O burro ergueu as patas dianteiras, quebrando o para-brisa e dando-lhe pisadas na cara. Bala zuniu pra todo lado, mas aí os policiais responderam o fogo. Pra encurtar a história, o burro trucidou o do volante no coice e os outros dois viraram peneira de chumbo dos brigadianos.




glossário

Pentecostalismo – movimento de renovação carismática que enfatiza manifestações dos dons do Espírito Santo.


Costa Doce – a costa do complexo lagunar do Rio Grande do Sul, em oposição ao litoral Atlântico.


Fanfarra – conjunto musical, banda


Guasquear – o mesmo que chicotear


Chusma – turma de marinheiros, bando


Patrola – máquina de terraplanagem usada para a abertura e manutenção de estradas de chão.


Brigadianos – Soldados da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, polícia militar.










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