Todo mundo fala que o povo
alemão é um povo frio, distante, duro. Não acho, não. Muito pelo contrário.
Acho o povo alemão sensível, emotivo. Tenho bons amigos descendentes e germanos
puros, que são pessoas maravilhosas, capazes de gestos afetivos desbragados.
Na família temos o caso do
tio Zaia, que inclusive, foi considerado o homem mais gentil de Porto Alegre.
Seu nome Siegfried Zeyer, nascido na Bavária. Chegou a São Leopoldo com apenas
um ano de idade, em 1909, quando seu pai, engenheiro de ferrovias, veio
implantar uma fábrica de vagões. Pois o seu Zeyer virou o tio Zaia através do
casamento com a tia Carminha, irmã mais nova do meu avô. Ela na flor da idade,
um piteuzinho, e ele já trintão, mas deram muito certo. Os dois viveram assim:
alimentando-se da alegria um do outro. E ele havera de ser tudo pra ela e vice
versa e das coisas que faziam, ele as fazia pra ela, e ela as fazia pra ele.
O alemão apesar de ter
estudado contabilidade e administração - não que isso tenha alguma coisa a ver,
sem preconceito, porém sem tirar o apesar - entendia muito de mulher, e fez
mestrado e doutorado na matéria, antes de casar. Isso depois eu conto, mas só
pra adiantar, certa vez os amigos gozadores dele perguntaram por que é que ele
sempre beijava a mão de qualquer mulher que lhe fosse apresentada. Ele
prontamente respondeu – a gente sempre tem que começar por alguma parte...
Tio
Zaia, funcionário concursado da Caixa Econômica Federal, depois de uns tempos
como caixa e contador foi ser o gerente da primeira agência de Novo Hamburgo. A
cidade, conquanto pequena, incluía vasta população das colônias. As pessoas
vinham de longe e chegavam cansadas, com sede, precisando de um banheiro. Não
havia ainda um padrão e o gerente é quem mobiliava e decorava a loja. Tio Zaia
criou banheiros para os clientes, bancos e senhas para evitar filas, servia
água e cafezinho para todos, não só para os ricos empresários, e até disponibilizava
um estacionamento, local com sombra e água para os animais dos que vinham a
cavalo ou de carroça. Dessa forma a “alemoada” parou de guardar os cobres
debaixo do colchão e enchia as burras da Caixa depositando na caderneta. O
gerente foi muito elogiado pelas iniciativas que resultaram em grande
produtividade.
Anos mais tarde assumiu a
diretoria regional, em Porto Alegre, destacando-se ainda mais pela sua
gentileza de maneiras, inclusive em negociações duras, e na administração de
crises. Era um cavalheiro, na mais alta acepção da palavra: homem de
sentimentos e ações nobres, delicado com os humildes e bem educado até ao
responder aos deselegantes. Na verdade ele entendia muito de gente. Era um
psicólogo nato! Tinha aquela capacidade de empatia, ou seja, de se colocar na
situação do outro. Contava histórias engraçadas, fazia umas adivinhações,
aplicava umas pegadinhas, sem humilhar jamais, absolutamente, com muita classe,
com estilo e elegância.
Sabe aquele tempo em que a
TV era em preto e branco? As transmissões eram por antenas repetidoras. Havia
uma porção delas espalhadas pelas regiões mais populosas do país. Dá pra
imaginar isso? Um programa gerado no Rio de Janeiro ia sendo repetido por
antenas a cada cem quilômetros, atravessando São Paulo, Paraná e Santa Catarina
até chegar a Porto Alegre! Quando um programa era interrompido por dificuldades
de transmissão, as estações colocavam um slide ou davam uma mensagem prevenindo
aos telespectadores de que estavam fora do ar, que o problema não era no seu
aparelho receptor. Pois bem, nesse tempo os aparelhos custavam caro e pouca
gente tinha televisão. Eu mesmo só assistia alguma coisa quando ía na casa da
tia Carminha e do tio Zaia. Nessa época ver TV não era ainda um hábito
solitário. Certa vez estávamos reunidos após o jantar, um monte de gente,
assistindo ao nosso programa favorito e de repente, assim do nada a imagem foi
sumindo, apagando dos lados até sobrar só um pontinho branco no centro. Foi uma
decepção geral, especialmente minha, pois bem na hora do “A Palavra é” que eu
adorava. Então o tio Zaia disse prontamente que ia telefonar e discou com toda
a pompa.
- Alô, é da TV Piratini, o
canal 5?
- Sim, em que posso lhe ser
útil, respondeu cortês a telefonista.
-
Estávamos vendo o programa “Flávio Cavalcanti” e a imagem sumiu, mas fiquem
tranqüilos. Queremos informar que a dificuldade não é da estação transmissora,
é o nosso aparelho receptor que saiu do ar, pois os vizinhos da frente estão
captando perfeitamente. Como os senhores sempre nos avisam queremos retribuir a
gentileza. Depois de umas boas risadas a conversa emendava noite adentro e
ninguém mais se importava com a válvula queimada.
Certa ocasião os amigos e
colegas da Caixa mancomunaram-se numa armação para por a prova a sua gentileza
de maneiras à mesa. Todas as semanas eles se reuniam num restaurante italiano
que havia na Avenida Independência, pouco depois do Colégio Rosário. Naquela
noite estavam uns sete ou oito companheiros e combinaram com a italianinha que
servia as mesas, para que ignorasse o seu Zaia e não colocasse nada no prato
dele. Queriam ver se iria se incomodar e ralhar com ela. A guria ficou com pena
mas topou a mangação. Começou a servir a direita e parou a esquerda. Serviu a
todos, menos o tio Zaia. A especialidade de que ele mais gostava era justamente
a sopa de capeletti. Parecia que a sopeira estava vazia e que a moça voltaria
trazendo mais. Enquanto isso o pessoal foi comendo o delicioso capeletti,
bebericando o vinhozinho e as tostadinhas com orégano, fazendo de conta que
nada tinha acontecido. Daí a pouco a jovem voltou com mais daquela sopa
deliciosa e repetiu o processo, colocando uma concha em cada prato, começando
pela direita e parando a esquerda do tio, conversando e dando risadas com o
pessoal que elogiava o capelletti, - que hoje está mesmo especial! E a sopeira
bem ali na frente do tio Zaia, que já estava azul de fome, e com água na boca
por causa do aprazível aroma. Então a garçonete já ia retirando da mesa quando
finalmente o tio Zaia falou:
- Senhorita, faça o favor...
O pessoal disfarçou olhando
de rabo de olho só pra ver o entrevero.
- Sim,
o que senhor deseja?
- A
senhorita poderia me servir esse delicioso capelletti?
- Mas
eu já lhe servi, disse a italianinha se fazendo de séria.
Todos silenciaram pensando
que agora o caldo iria entornar, mas que nada. Ele falou delicadamente:
- É, serviu, mas eu gostaria
de mais um pouco, se não for incômodo.
Desbragados – sem limites, descomedidos, indecorosos
Piteuzinho – em gastronomia, uma iguaria delicada.
Aqui designando uma pequena especialmente linda e atraente.
Alemoada – expressão que designa os colonos e
descendentes de origem alemã.
Cobres – dinheiro
Burras – cofres
Acepção – definição, significado
Mangação – brincadeira, zoação
Entrevero
– escaramuça, luta, batalha
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