sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O HOMEM MAIS GENTIL DE PORTO ALEGRE



Todo mundo fala que o povo alemão é um povo frio, distante, duro. Não acho, não. Muito pelo contrário. Acho o povo alemão sensível, emotivo. Tenho bons amigos descendentes e germanos puros, que são pessoas maravilhosas, capazes de gestos afetivos desbragados.
Na família temos o caso do tio Zaia, que inclusive, foi considerado o homem mais gentil de Porto Alegre. Seu nome Siegfried Zeyer, nascido na Bavária. Chegou a São Leopoldo com apenas um ano de idade, em 1909, quando seu pai, engenheiro de ferrovias, veio implantar uma fábrica de vagões. Pois o seu Zeyer virou o tio Zaia através do casamento com a tia Carminha, irmã mais nova do meu avô. Ela na flor da idade, um piteuzinho, e ele já trintão, mas deram muito certo. Os dois viveram assim: alimentando-se da alegria um do outro. E ele havera de ser tudo pra ela e vice versa e das coisas que faziam, ele as fazia pra ela, e ela as fazia pra ele.
O alemão apesar de ter estudado contabilidade e administração - não que isso tenha alguma coisa a ver, sem preconceito, porém sem tirar o apesar - entendia muito de mulher, e fez mestrado e doutorado na matéria, antes de casar. Isso depois eu conto, mas só pra adiantar, certa vez os amigos gozadores dele perguntaram por que é que ele sempre beijava a mão de qualquer mulher que lhe fosse apresentada. Ele prontamente respondeu – a gente sempre tem que começar por alguma parte...
          Tio Zaia, funcionário concursado da Caixa Econômica Federal, depois de uns tempos como caixa e contador foi ser o gerente da primeira agência de Novo Hamburgo. A cidade, conquanto pequena, incluía vasta população das colônias. As pessoas vinham de longe e chegavam cansadas, com sede, precisando de um banheiro. Não havia ainda um padrão e o gerente é quem mobiliava e decorava a loja. Tio Zaia criou banheiros para os clientes, bancos e senhas para evitar filas, servia água e cafezinho para todos, não só para os ricos empresários, e até disponibilizava um estacionamento, local com sombra e água para os animais dos que vinham a cavalo ou de carroça. Dessa forma a “alemoada” parou de guardar os cobres debaixo do colchão e enchia as burras da Caixa depositando na caderneta. O gerente foi muito elogiado pelas iniciativas que resultaram em grande produtividade.
Anos mais tarde assumiu a diretoria regional, em Porto Alegre, destacando-se ainda mais pela sua gentileza de maneiras, inclusive em negociações duras, e na administração de crises. Era um cavalheiro, na mais alta acepção da palavra: homem de sentimentos e ações nobres, delicado com os humildes e bem educado até ao responder aos deselegantes. Na verdade ele entendia muito de gente. Era um psicólogo nato! Tinha aquela capacidade de empatia, ou seja, de se colocar na situação do outro. Contava histórias engraçadas, fazia umas adivinhações, aplicava umas pegadinhas, sem humilhar jamais, absolutamente, com muita classe, com estilo e elegância.
Sabe aquele tempo em que a TV era em preto e branco? As transmissões eram por antenas repetidoras. Havia uma porção delas espalhadas pelas regiões mais populosas do país. Dá pra imaginar isso? Um programa gerado no Rio de Janeiro ia sendo repetido por antenas a cada cem quilômetros, atravessando São Paulo, Paraná e Santa Catarina até chegar a Porto Alegre! Quando um programa era interrompido por dificuldades de transmissão, as estações colocavam um slide ou davam uma mensagem prevenindo aos telespectadores de que estavam fora do ar, que o problema não era no seu aparelho receptor. Pois bem, nesse tempo os aparelhos custavam caro e pouca gente tinha televisão. Eu mesmo só assistia alguma coisa quando ía na casa da tia Carminha e do tio Zaia. Nessa época ver TV não era ainda um hábito solitário. Certa vez estávamos reunidos após o jantar, um monte de gente, assistindo ao nosso programa favorito e de repente, assim do nada a imagem foi sumindo, apagando dos lados até sobrar só um pontinho branco no centro. Foi uma decepção geral, especialmente minha, pois bem na hora do “A Palavra é” que eu adorava. Então o tio Zaia disse prontamente que ia telefonar e discou com toda a pompa.
- Alô, é da TV Piratini, o canal 5?
- Sim, em que posso lhe ser útil, respondeu cortês a telefonista.
          - Estávamos vendo o programa “Flávio Cavalcanti” e a imagem sumiu, mas fiquem tranqüilos. Queremos informar que a dificuldade não é da estação transmissora, é o nosso aparelho receptor que saiu do ar, pois os vizinhos da frente estão captando perfeitamente. Como os senhores sempre nos avisam queremos retribuir a gentileza. Depois de umas boas risadas a conversa emendava noite adentro e ninguém mais se importava com a válvula queimada.
Certa ocasião os amigos e colegas da Caixa mancomunaram-se numa armação para por a prova a sua gentileza de maneiras à mesa. Todas as semanas eles se reuniam num restaurante italiano que havia na Avenida Independência, pouco depois do Colégio Rosário. Naquela noite estavam uns sete ou oito companheiros e combinaram com a italianinha que servia as mesas, para que ignorasse o seu Zaia e não colocasse nada no prato dele. Queriam ver se iria se incomodar e ralhar com ela. A guria ficou com pena mas topou a mangação. Começou a servir a direita e parou a esquerda. Serviu a todos, menos o tio Zaia. A especialidade de que ele mais gostava era justamente a sopa de capeletti. Parecia que a sopeira estava vazia e que a moça voltaria trazendo mais. Enquanto isso o pessoal foi comendo o delicioso capeletti, bebericando o vinhozinho e as tostadinhas com orégano, fazendo de conta que nada tinha acontecido. Daí a pouco a jovem voltou com mais daquela sopa deliciosa e repetiu o processo, colocando uma concha em cada prato, começando pela direita e parando a esquerda do tio, conversando e dando risadas com o pessoal que elogiava o capelletti, - que hoje está mesmo especial! E a sopeira bem ali na frente do tio Zaia, que já estava azul de fome, e com água na boca por causa do aprazível aroma. Então a garçonete já ia retirando da mesa quando finalmente o tio Zaia falou:
 - Senhorita, faça o favor...
O pessoal disfarçou olhando de rabo de olho só pra ver o entrevero.    
          - Sim, o que senhor deseja?
          - A senhorita poderia me servir esse delicioso capelletti?
          - Mas eu já lhe servi, disse a italianinha se fazendo de séria.
Todos silenciaram pensando que agora o caldo iria entornar, mas que nada. Ele falou delicadamente:
- É, serviu, mas eu gostaria de mais um pouco, se não for incômodo.


Desbragados – sem limites, descomedidos, indecorosos
Piteuzinho – em gastronomia, uma iguaria delicada. Aqui designando uma pequena especialmente linda e atraente.
Alemoada – expressão que designa os colonos e descendentes de origem alemã.
Cobres – dinheiro
Burras – cofres
Acepção – definição, significado
Mangação – brincadeira, zoação
Entrevero – escaramuça, luta, batalha

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