segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

BORBOLETAS NO ESTÔMAGO



         Cheguei a Covent Garden com um misto de curiosidade, fascínio e reverência. Estava abastecido de informações sobre a fabulosa casa de espetáculos da Bow-Street em Londres. Construída no século XVIII, no local de um antigo convento, para se representar o drama e a tragédia, foi consagrada à ópera na época Vitoriana, na segunda metade dos anos mil e oitocentos, passando a se chamar Royal Opera House. Meu olhar foi imediatamente capturado pelas seis colunas com capitel coríntio. Que prédio formidável, pensei eu, que magníficas linhas, quanta sobriedade... Uhh!  Acho que um construtor de gaiolas de passarinho deixou suas marcas por aqui. Há quem não concorde com acréscimos de vidro e aço, mas essa parece ter sido a paixão dos arquitetos europeus no final do milênio. Todavia, não é mais a pedra o material nobre das construções, e as armações transparentes parecem dizer que estão ali para contrastar, para realçar ou mesmo emoldurar o antigo e admirável. Em Covent Garden  não construíram uma pirâmide, como no Louvre, mas alguma coisa circular, que me lembra uma rosácea ou mesmo aqueles barcos miniaturas dentro de uma garrafa, ligando a um novo prédio  de paredes lisas, em forma de cubo, com heliponto em cima.
         Adentrei reverente, afinal estava em um dos mais famosos templos, consagrado às expressões máximas das artes cênicas e da música. Dei uma alisada no terno, olhei para os sapatos, passei o bico na perna da calça para tirar uma poeirinha, senti o nó da gravata e conferi os botões do casaco. Era cedo ainda, mas entreguei o bilhete a uma jovenzinha ruiva, de uniforme, que me pediu para segui-la até meu lugar na plateia. Não a acompanhei, fui entrando devagar como um noivo, olhando tudo com admiração e pisando com cuidado no carpete macio.  Ela parou no meio e me esperou sorrindo com simpatia. Devia estar acostumada com o deslumbre de tantos turistas com a suntuosidade da sala. Quando cheguei à minha poltrona, bem lá na frente, na segunda fila, agradeci e dei uma moeda à garota, mas não me sentei. Passei a mão no veludo, segurei, e iniciei um passeio demorado com os olhos sobre a plateia, pelas frisas, pelos camarotes, pelo balcão. Dobrei o pescoço e apreciei a decoração do teto, o lustre gigantesco, as luzes cintilando nos cristais. Antes de me voltar para o palco fechei os olhos e me concentrei no cheiro do lugar. Não precisava identificar, só sentir as notas e deixar afluírem centenas de memórias que cada fragrância despertava. Reviver uma antiga experiência, fazer conexões, comparar situações, a emoção de estar vivendo um sonho. Era um festival de sensações, me despregando do lugar comum, da aridez cotidiana, da insipidez de dias menos afortunados. Sem abrir os olhos abaixei o assento e deixei o corpo se acomodar. Com o queixo mais perto do coração, esperei que passasse o arquejo provocado por um contentamento envelhecido: o “Lago dos Cisnes”, primeiro espetáculo do menino de nove anos, no teatro São Pedro de Porto Alegre. Há quanto tempo atrás eu tinha estado naquele lugar mágico que me fascinara os sentidos e provocara tão intensas emoções?
         Admirei a cortina, seus detalhes dourados, a decoração do palco, tudo lindo.  Que noite iria viver na Royal Opera House! Despertar de um sonho e ainda estar em um lugar idílico?  Foi o que pensei vendo aquele unicórnio branco do estandarte real no tecido encarnado que cobria a boca de cena.
Os músicos da orquestra tomavam seus lugares e se exercitavam com os instrumentos. A ruivinha simpática me sorriu de novo quando trouxe mais pessoas. As poltronas foram todas ocupadas. O primeiro violino da orquestra deu três batidinhas com o arco na estante chamando a atenção dos colegas e solou a nota La. Ouviu-se o som contínuo da conferência da afinação.
                  A doxologia da noite seria Madama Butterfly, de  Giacomo Puccini. Fundamentada no texto do americano David Belasco, a ópera foi representada pela primeira vez em Milão, em 1904. É a história de  Cio-Cio-Sam, uma linda garota japonesa que se casa com um oficial da marinha americana. O militar não levou a sério o casamento, considerando-o um passa-tempo enquanto servia no estrangeiro. Terminado o período de serviço retornou para os Estados Unidos abandonando-a. Anos mais tarde fica sabendo que tivera um filho com ela. Então decide ir ao Japão com sua esposa americana para buscar a criança. Cio-Cio-Sam, que sempre acreditou no amor e no retorno do marido, vê suas esperanças perdidas e, diante da desilusão e da iminente perda do filho, decide que não vale mais a pena viver.
         Fiquei deliciosamente surpreso com a encenação. Na verdade, não procurei saber nada adredemente sobre o diretor e a abordagem que faria da ópera de Puccini. Ao abrir o pano estávamos diante de um quadro do filme “Sonhos” de Akira Kurosaua, um cartão postal japonês, a tradição nipônica representada em estilo suntuoso, brilhante como um desfile na Marquês de Sapucaí.
Na primeira cena o capitão-tenente da marinha americana Pinkerton, acerta com o corretor de matrimônios Goro, a quem encomendou uma esposa, os detalhes da recepção e do aluguel de um solar, numa colina de Nagasaki. Então vem o dia do casamento e chegam os parentes da noiva Cio-Cio-San e convidados. Ao cumprimentar o noivo, o cônsul americano Sharpless percebe a frivolidade do marinheiro quando este participa que arrendou a mansão e a mulher por novecentos e noventa e nove anos, podendo desistir do contrato a qualquer tempo. Sharpless procura aconselhá-lo, mas Pinkerton desconversa falando dos Estados Unidos.
A entrada da noiva é maravilhosa. O oficial, que só a conhece nesse instante, se excita ao ver que ela tem apenas 15 anos. Os nubentes conversam e Cio-Cio-San conta a Pinkerton que sua família perdeu tudo, e que agora, casada, se considera uma mulher venturosa. A festa, porém, é interrompida por um velho sacerdote, tio de Cio-Cio-San que a recrimina porque ela renunciou as tradições e a religião de seus ancestrais tornando-se cristã. Ela é então renegada pelos parentes que vão todos embora.
No final do primeiro ato, o casal caminha pelo jardim. A despeito de tudo, a recém casada se diz muito feliz. Observando seus ricos trajes, o andar gracioso e os gestos delicados, o marido a compara a uma linda borboleta.
         Intervalo de meia hora. Ao passar pelo corredor percebi a dificuldade de um casal de octogenários e dei a mão a senhora para erguer-se e sair para o corredor. Ela e ele agradeceram muito e num instante já estavam estendendo a mão e apresentando-se. De vereda perceberam o sotaque e me identificaram como brasileiro. Fiquei mais espantando quando ela afirmou que eu devia ser gaúcho.
- Deveras! – disse eu admirado.
E num instante o vento Minuano deu uma lufada bem ali no corredor da Royal Opera House. Estava eu diante de uma conterrânea, Dona Abigail Fontes Vestey, jaguarense dos quatro costados. O marido, Mr. Gilbert Vestey, cidadão britânico, mas falando muito bem o português, e de uma simpatia calorosa, estranha aos ingleses. Bebemos uma taça de champanhe no prédio anexo, que tinha lá seu charme e utilidade. Eles concordaram rindo com a minha ideia de estar no convés de um barco dentro de uma garrafa.
Conversamos animadamente até que o sinal nos chamou para o reinício do espetáculo. Não haveria intervalo entre o segundo e terceiro atos, por isso combinamos de nos encontrar no final para mais um drink e trocarmos impressões sobre a ópera. Gostei tanto dessas pessoas! Voltei para o meu lugar confirmando comigo mesmo que era uma noite de gala.
         Segundo ato. Passaram-se três anos. A jovem Cio-Cio-San tem um bebê e está em dificuldades financeiras. Tornou-se uma mulher patética, um arremedo de americana, que se recusa a crer no abandono do marido e ralha com a sua fiel criada Suzuki que a admoesta a rezar para os deuses de seus ancestrais.
O cônsul americano Sharpless, penalizado com a situação da jovem japonesa, vai ao solar para dar notícias. Nesse instante chega também o corretor Goro trazendo nova proposta de casamento para Butterfly, uma vez que o abandono pelo marido permite que se case novamente. Ela não aceita a proposta de um rico admirador porque acredita que seu marido voltará para ela e para o filho, e serão felizes. Goro vai embora. Ao saber da criança Sharpless fica surpreso. Mesmo assim ele procura desiludir Cio-Cio-San, explicando sobre a carta que recebera dando conta de que Pinkerton casara-se nos Estados Unidos. Não adianta, ela não compreende. E ainda por cima, interpreta erroneamente, a seu favor, todas as frases que escuta, e renova as esperanças do breve retorno  do seu amado.
No último o ato se dá o desfecho da tragédia anunciada. A nova senhora Pinkerton ao saber que seu marido tem um filho decide que irá criá-lo. Viajam para o Japão, e ela mesma vai encontrar-se com Butterfly e dizer que o levarão. Finalmente desiludida, com o coração dilacerado, a infeliz repudiada concorda, mas exige que Pinkerton venha pessoalmente buscar o menino.  Quando a mulher sai, Cio-Cio-San manda preparar a criança, depois veste-se com seu mais fino traje e pinta o rosto e os lábios. Reencontrando-se com as tradições do seu povo, retira de seus guardados um punhal, herança do pai, onde lê a inscrição “Morre com honra, quando for impossível viver sem honra”.
Ao chegar o americano encontra a mãe de seu filho esvaindo-se em sangue, surpreendentemente bela.
Quando a música cessou, os espectadores permaneceram ainda em silêncio por alguns segundos, que pareceram mais longos. A suspensão inevitável diante daquilo que nos arrebata os sentidos, como o recuo do mar antes do tsunami. A ofício inebriante da música e do teatro nos confrontava com a inexorabilidade da terminação de todos os viventes. E só mesmo num palco, com grandes atores, a morte seria tão digna. De repente começaram as palmas, intensas desde o início e aumentando, na medida em que os amantes do canto lírico se punham de pé.
         A melhor maneira de amar alguma coisa é pensar que a poderíamos perder. E eu amei aquele espetáculo, porque ele foi único, porque foi exatamente daquela maneira a representação, que jamais se repetirá da mesma forma como um filme, e porque eu poderia não ter estado ali, por opção, por ausência de conhecimento, ou mesmo pela impossibilidade, por não ser onipotente e assistir a todos os espetáculos que se representaram nesse palco. Embora a história seja a mesma, e sempre possa ser encenada, apesar disso, nunca mais seria como na primeira vez no Royal Opera House.
         Depois de oito ou dez minutos de aplausos, aos intérpretes, ao coro, à orquestra, aos solistas, ao maestro, ao diretor, e flores à soprano que interpretou Cio-Cio-San, o louvor público cessou, mas não sobreveio mais o sossego, nem dentro de mim se fez calma. A obra de arte pegou na veia. Eu sabia que a música sublime de Puccini e toda aquela atmosfera do teatro, da representação e do canto lírico iria circular e alimentar meu cérebro por semanas. Comecei a perceber coisas simples como isso de estar limpo, arrumado e cheiroso – é uma coisa bem agradável – não estar ulcerado, com dor no estômago, na cabeça ou na coluna. Sentia-me muito bem, obrigado. Ninguém me dava empurrões enquanto eu saia para o corredor, ninguém me batia, nem me pegava pela orelha, pelo contrário todos sorriam e me davam passagem. Tinha sido tão bem tratado, toda a vida. Atinava para o efeito que aquilo tudo encerrava em minha existência. Continuava aprendendo sobre mim e sobre a natureza humana, de um jeito aprazível, não como uma besta de carga mourejando de sol a sol em campos de trabalho rude.
         Desde muito novo aprendi com meus parentes que há uma boa maneira de saber que pessoas vale a pena conhecer através do olhar: aqueles de olhar vivo. Lá estavam dois pares de olhos sagazes e faiscantes sorrindo para mim. Se são os olhos as janelas da alma, dentro daqueles arcabouços vincados pelos anos, estavam duas crianças. Somente elas poderiam ter avistado a minha também! Mesmo antes que eu me aproximasse, ainda por entre as pessoas que saíam, seu Gilbert já me interpelou:
         - O senhor aceitaria ir à nossa casa? A essa hora, mesmo na Cosmópolis Londrina, jovens da nossa idade não tem um bom ambiente para jantar e beber alguma coisa.
         Dona Abigail se riu enquanto eu me aproximava e disparou:
 – A não ser tomar soro no hospital. Isso a qualquer hora!
         Cocei a cabeça e fingi estar pensando.
– Prefiro a sua casa. Obrigado! E saímos os três rindo de braços dados, desfilando pelo tapete vermelho como velhos amigos.
         No vestíbulo, uma dona trajando um terninho preto, com ar competente, abriu caminho entre a multidão e veio ao nosso encontro. Era Sarah, a assistente do casal. Depois das apresentações ela falou ao celular e foi nos conduzindo até a rua.  Em instantes o motorista abriu a porta de um Bentley na nossa frente.  
- E eu imaginando se iríamos de taxi ou de metrô! Disse me acomodando ao lado de Dona Abigail.
Ela riu e respondeu:
– Os Vestey, tem mais do que precisam para viver.
 - Espere, disse eu, - os Vestey da Vestey & Brothers?
- Hãhããã, vejo que o senhor conhece a História! Disse o Seu Gilbert.
A Vestey & Brothers, de Liverpool, era uma gigante do ramo da carne congelada. Em 1921 adquiriu o Frigorífico Rio Grande, na cidade de Pelotas, que passou a se chamar Frigorífico Anglo. A companhia não teve solução de continuidade depois de quatro gerações e encerrou as atividades em 1988.
- Me perdoem se pareço alcoviteiro, mas poderiam me contar como se conheceram? Parece que temos aqui uma “Butterfly” que deu certo?
- Sim, de fato, disse Dona Abigail. Tenho pena de tantas “Butterfly” que temos neste mundo globalizado. Outro dia mesmo estávamos acompanhando pelo noticiário o caso de uma brasileira que veio estudar na Inglaterra. Aqui conheceu um rapaz iraniano e casaram-se. Ela até parou de estudar e foi trabalhar para ajudá-lo a se formar. Tiveram dois filhos. Agora ele pediu o divórcio e fugiu para o Irã levando os meninos.
- Ele quer saber da nossa História, querida, interrompeu o marido.
- Vamos contar durante o jantar. Por enquanto podemos “dissecar” a ópera, por favor?!
Que maravilha, eu estava notando aquela altivez bem humorada das pessoas de espírito. Os dois homens aquiecemos prontamente. Dona Abigail continuou.
- Eu entendo que Butterfly, deixou de lado sua tradição e sua religião para se transformar no que ela imaginava ser uma esposa americana. Nesse caso ela estaria cumprindo a tradição que manda a mulher deixar a casa dos pais e seguir o marido. Mas ela não teve nenhuma proteção quando ele abandonou-a e depois voltou só para levar-lhe o filho.
Já que era para jogar o seu Gilbert rebateu:
 - Para mim todas as religiões e culturas com seus preceitos machistas podem afundar-se nas fossas abissais que eu não dou a mínima. A pobrezinha foi vendida, seduzida e depois deixada para trás, permanecendo num exílio voluntário por causa do amor. A figura do Pinkerton é mesmo a de um canalha.
Dona Abigail aprovou, aconchegando-se ao marido. Então perguntou a minha visão do texto.
- Creio que o próprio Puccini nos autoriza a fazer transposições de tempo e espaço, uma vez que na partitura de Madama Butterfly o compositor determinou a “Atualidade” para o desenvolvimento da ação. E como no início do século XX o Imperialismo estava em seu auge, com exacerbação da superioridade da raça branca, e da sua cultura, sobre as demais do planeta, o texto, apesar do lirismo, deixa margem ao pensamento crítico, concluí.
- Nesse caso o libreto pode ser interpretado como um drama passional ou como uma história de colonização e de perda da identidade cultural, disse Seu Gilbert.
- Perfeitamente, concordei.
E nesse momento o automóvel parou e descemos na portaria de um prédio de alto padrão, sempre precedidos pela assistente, que abriu a porta do carro, ajudou-nos a sair, chamou o elevador.  Na cobertura aristocrática, com vista para um parque com monumentos iluminados, fomos recebidos por duas empregadas, uma indiana e outra africana. Dona Abigail me apresentou como convidado e deu as ordens. Durante o jantar, como prometido, o casal contou-me sua história de amor.

Corria a II Guerra na Europa e as crianças inglesas eram afastadas dos pais envolvidos no esforço de guerra. Para ficarem a salvo dos bombardeios, a maioria era enviada para o interior, ficar com parentes ou famílias de acolhida, bem como em internatos. Os que possuíam meios enviavam os filhos para regiões sem conflito, especialmente na América. Os administradores dos frigoríficos britânicos no Rio Grande, no Uruguai e na Argentina recebiam seus parentes.
Em 1942, a Anglo S.A. iniciou a construção de um grande complexo industrial, às margens do canal São Gonçalo, inaugurado em dezembro de 1943. Durante a festa de inauguração, o jovem Gilbert só tinha olhos para uma princesa da Campanha, por nome Abigail, que era o mimo do pai, estancieiro de Jaguarão, com invernadas abarrotadas de bois e ovelhas.
O rapaz de seus 15 anos, gordinho e de cabelos vermelhos já arriscava algumas palavras em português, que ele se esforçava para aprender.  Descobriu que a donzela estudava no Colégio das Freiras e morava com as tias em Pelotas. Endereçou-lhe versos:
Vosso Gilbert descobriu
Abigail
Consultando estrelas mil
Alguém nasceu a primeiro de abril.
Pronunciar algumas palavras era uma coisa, se atrever a escrever em português era ousadia que lhe sairia caro. Além de desconhecer a língua que é mesmo das mais difíceis, ignorava a cultura.  Se a ignorância sobre a associação de versos românticos com o dia da mentira já bastava pra espantar a moça, podia passar sem reprimenda. Não fosse a infeliz coincidência formando o acróstico VACA, talvez nem tivesse sido expulso debaixo de vassouradas das criadas e das tias da menina.
Eu ria muito do jeito que ambos me contavam o caso, atropelando-se.
– Mas era um amor de garota! O senhor não desistiu, não é mesmo?!
- Absolutamente! Esperei na saída do Colégio e tanto me expliquei e me desculpei, que ela acabou perdoando.
O caso continuou mais hilariante, ainda. Sendo convidado para o aniversário de 15 anos, o inglesinho recebeu autorização de seus tios para ir a Jaguarão.
Como era o costume da Campanha, o pai fez festa gorda na estância, com carreira, rodeio e fandango. Pra comer, churrasco de boi e de carneiro em vala comprida, e peru por cabeça. Saúde e vivas da peonada com barulheira de foguetes e tiros de pólvora das garruchas. E tudo o que havia de mais hospitaleiro e cordial.
A noite teve baile na cidade, no salão da Sociedade Harmonia Lira.
A menina adorava dançar e tinha desembaraço no ambiente social, bem criada que era com professor de música, pintura, e até de inglês, mesmo sem ser o costume da época. O que se ensinava para os jovens da classe alta era o francês, mas o pai que via mais longe do que a maioria dos contemporâneos percebia que a influência dos ingleses e dos americanos no Pampa só fazia aumentar, movimentando o money.  Assim unia o útil ao agradável incentivando quem sabe a formação de uma futura intéprete para as melhores negociações com os compradores de língua inglesa.
         Ia o baile adiantado, com bela orquestra. A ansiedade da aproximação tornava o nosso jovem suarento e hesitante. Quando Gilbert tomou coragem e foi pedir a dança para Abigail estava encharcado dentro do terno de casimira.
 Como convinha, uma moça educada não se negava e saiu para dançar. Mal acabando quis pedir licença, mas o mancebo insistiu - mais uma, por favor. Ela então botou-lhe a mão no peito para mantê-lo afastado e disse:
         - Você sua muito!
E o Gilbert se derretendo todo:
- Me too. Eu também vou ser seu my Darling. E tascou-lhe um beijo.
 Nunca ninguém desceu a escadaria daquele clube tão depressa, na verdade atirado lá de cima pelos primos da aniversariante e com a ameaça do pai:
- Se eu te pego de novo perto da minha filha te amarro no palanque e te mostro como é que tourinho vira boi!
O bisonho tinha, como se diz, colocado a carreta na frente dos bois. Nesses tempos, o primeiro beijo público de um casal seria diante do altar, após a troca de alianças.
- Nessa altura já estava pensando que era mais seguro em Londres, debaixo de todo o fogo alemão! Disse o Seu Gilbert rindo e enchendo minha taça.
Dona Abigail, já coradinha por causa do vinho, deu sua versão:
- Eu fiquei estupefata plantada no meio do salão. As pernas me faltavam, mas parecia que flutuava. Jamais imaginara que o primeiro beijo seria tão intenso. Sentia borboletas no estômago. Tinham arrastado o Gilbert para fora, e eu ali parecendo uma estátua de Bellini: a Santa Teresa em êxtase. As amigas vieram me acudir. Saí correndo. Do alto da escada vi o Gilbert desmantelar-se nos paralelepípedos da rua e escutei a ameaça trovejante do meu pai. Corri para fora, agarrei-me a ele e gritei:
- Não faça isso com meu namorado, papai.
- “There is no second chance to make a first good impression.” Não há uma segunda chance para se causar uma primeira boa impressão? Hahaa, isso é uma bobagem. Eu tive mais do que isso, exclamou meu anfitrião. 
Gilbert não voltou para a Europa. Pediu permissão aos pais para viver no Brasil. Completou os estudos e casaram-se. Só foram viver em Londres bem mais tarde quando ele assumiu uma das diretorias do grupo.


Rosácea – elemento da arquitetura medieval; vitral em forma de rosa sobre a portaria principal das catedrais góticas.
Arquejo – palpitação, descompasso no coração.
Doxologia – na liturgia cristã, o Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Uma referência à ópera como glorificação da música, do canto lírico, e da encenação.
Adredemente – a priori, antes, antecipadamente.
Vento Minuano – como os gaúchos chamam o vento Sul.
Arcabouços – estruturas, carcaças, esqueletos.
Cosmópolis – cidade onde se encontram gentes de todo o mundo.
Bentley – marca de automóvel inglês luxuoso e muito caro.
Libreto – programa da ópera, com a história e as letras do canto lírico.
Partitura – caderno de papel com as linhas próprias para a grafia das notas onde estão registradas as diversas partes que compõe uma obra musical.
Bisonho – inábil, inexperiente.






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