Tia Carminha
era prima-irmã do meu avô. Morava em um apartamentinho em Porto Alegre, bem no
centro, na Rua Andrade Neves. Eu até trabalhei de Office-boy numa firma, bem aí
nessa rua. Na frente do prédio dela tinha uma trattoria, sabe, aquele restaurante
italiano. Ah, como eu comia macarronada com polpetas...
Essa minha tia
era viúva e vivia solita. Foi casada com um sujeito muito mais velho, que
inclusive, tinha sido diretor da Caixa Econômica Federal. Então, tinha uma boa
pensão e era uma pessoa muito boa. Gostava de ajudar a todo mundo. Emprestava
dinheiro pros desempregados, amparava as colegas de viuvez, consertava roupa
usada para dar aos pobres, fazia enxoval de bebê...
E por ser
muito dada, muito simpática, falava com todo mundo e era conhecida a sua figura
franzina, de cabelo armado, bem branquinho, desses que chegam a ficar azulado,
sempre arrumadinha, sempre empoada.
Um dia a dona
Carminha desceu à rua com um pacote muito grande. Uma caixa embrulhada em papel
vermelho, amarrada com laço de fita e tudo. Parou naquele bequinho que tem
antes da Borges de Medeiros, que desce pra rua da Praia. Do outro lado da rua
ficava o centro de exposições das telecomunicações, em forma de mata-borrão. Em
1972 armaram o maior aparato para a primeira transmissão de TV a cores - eu
vi! Não me recordo o nome do beco, mas
sei que tinha uma tabacaria na esquina. Lembro do cheiro dos tabacos, da
plaquinha dos charutos Suerdick, das caixas de havanas. O cheirinho bom mesmo devia vir dos fumos de cachimbo. Eu nem
sei como um hábito tão asqueroso como esse de fumar já foi tão comum e até
considerado chique!
E a tia estava
ali se informando do itinerário dos bondes quando um sujeitinho, muito
solícito, se ofereceu para segurar o pacote. De terninho branco, bigodinho
aparado, sapato de duas cores, pediu um maço de Continental liso, fez jeito de
quem ia pegar dinheiro, mas depois disse que ia devolver porque estava sem
troco. A tia Carminha então disse:
- não, meu
filho, deixa que eu pago.
Ele protestou:
- imagine, não
se incomode!
- eu tenho
aqui, deixa, disse ela.
Então ele
aceitou agradecendo e prometendo devolver depois e aquela coisa e tal. E foram
conversando mais um pouco até que ele pediu licença um segundinho, só para
trancar o auto, que ele iria acompanhá-la até a parada dos bondes, que não se
preocupasse, que seria um imenso prazer, que ele já voltava... E se foi com o
pacote da tia Carminha. E ela ficou ali conversando, o tempo passando, e nada
do sujeitinho voltar. O dono da tabacaria, desconfiando, mandou o balconista lá
fora procurar o sujeito. E foram mais dois, um pra cada lado, e foi juntando
gente, os porteiros dos prédios, as
vendedoras da sapataria, o bilheteiro. Ninguém sabia mais do camarada. Ainda
falavam, mas como que sumiu, um indivíduo de terno branco com um pacote vermelho?
Mas sumiu, se
foi e não voltou. Até os Pedro e Paulo apareceram:
- a
senhora tem que dar queixa, registrar a ocorrência, descrever o meliante.
E a tia
Carminha, morrendo de rir:
- deixe que esse
me fez um grande favor sem querer.
- mas como,
dona Carminha? O vigarista levou o seu pacote!
E ela:
- eu só queria
ver a cara dele, a surpresa quando abrir o pacote.
Nisso todo
mundo silenciou para ouvir o que tinha dentro daquele lindo embrulho:
- o meu cachorrinho
pequinês velhinho, que morreu esta noite. Eu tava pensando o que fazer, e ia
levar pra jogar num descampado.
Bondes de Porto Alegre |
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