Branca chegou à vida perdendo. A mãe
não resistiu às complicações do parto. A bebezinha foi aparada e criada por
Mãe-Obá, uma negra mandingueira, que foi sua mãe de leite e quem lhe deu o
apelido.
Na pia batismal recebeu o nome de Ana Clara e teve
confirmada a promessa da genitora agonizante, dedicando a Santa Ana, a avó, de
Nosso Senhor Jesus Cristo, os cabelos que jamais poderiam ser cortados até que
tivesse a primeira gravidez.
O pai era um estancieiro das antigas, com uma sesmaria de
campos e aguadas a perder de vista, coalhada de gado. Gadaria orelhana cuidada
por tantos agregados e posteiros.
A menina cresceu como xodó de todos, reinava absoluta entre
a gurizada da estância. Fazia o que queria, desde subir em árvores pra ver
ninhos de passarinho, caçar mulitas, montar arapucas, comer araçás, tomar banho
nas sangas. Montava a cavalo com sela ou em pelo, ajudava a botar as vacas,
apostava carreiras.
Aprendia em casa, com professores itinerantes, temporada de
letras e aritmética, outra de música e artes plásticas. Aos doze anos, colégio
de freiras no Alegrete, oito meses no internato e quatro em casa até se formar.
Com dezoito, mesmo contra a vontade, seguiu o arranjo do pai e uniu-se ao
capataz Porfírio Corrêa.
Porfírio era dessa qualidade de pessoa que pensa que é mais
do que os outros, que se acha mais importante, que acredita ter mais direitos,
e entende que a Lei só existe pra lhe favorecer sendo aplicada contra os seus
inimigos.
Para não parecer que
casava por interesse declarou no dia das bodas:
- Ana Clara, minha esposa, a maior riqueza que eu tenho é a
sua cabeleira. Desprezo todo o resto por ela, assim como te desprezarei no dia
que a cortares.
A nubente, senhorita de boa índole, não viu afronta no dito,
e dele, como todos, achou graça. Só Mãe-Obá percebeu na empáfia e no mau verso
o prenúncio de uma desgraça.
Quando mais tarde tentou lhe explicar a promessa da mãe o
Pofírio endureceu:
- Não vou atrás da conversa dessa negra fuxiqueira. A mulher
casada obedece ao marido e estão desfeitas as promessas e remessas.
Queixou-se ao pai. Este deu razão ao marido. Além da
reprimenda, Mãe-Obá foi expulsa da casa grande e mandada pra viver no povoado.
A jovem percebia que lhe botavam arreios, freio e boçal, mas
não permitiria que lhe cravassem as esporas.
Meses depois, quando Mãe-Obá confirmou a gravidez, não
correu para contar ao marido. Foi primeiro ao barbeiro e mandou tosar a melena.
Abundantes cabelos negros, bem cuidados, com fios inteiriços que lhe chegavam
além das nádegas, cortados na altura dos ombros. Ficava bem. Cumpriria a
promessa no altar de Sant’Ana, e em pouco tempo teria de novo longas madeixas.
Manhã nublada de janeiro, chuva fina persistente após o
temporal da noite. Sem camisa, pés descalços, calça arremangada até os joelhos,
suspensórios, os piás aproveitavam pra correr de bicicleta, dar freadas na lama
e derrapar nas poças d’água.
Notei quando atravessou a praça acompanhada da senhora negra
e duas mulatinhas. Abriam e fechavam as sombrinhas e riam, um riso branco de
copo-de-leite. Fiquei parado, olhando, um pé no chão, o outro no pedal pelo
meio do quadro da bicicleta grande. Desde sempre eu atinava com a beleza das
mulheres. E essa era formosa de parar o trânsito, mesmo que fosse só das
bicicletas dos guris, naquele povoado modorrento.
Ficamos a dar voltas por perto, passando devagarzinho para
apreciar o trabalho do cabeleireiro, e tecendo comentários sobre o inolvidável
corte. Tenho nítida na memória a mulher a se olhar no espelho, sentindo o
cabelo com as mãos, de um lado e outro e sorrindo do estranhamento. As gurias e
a senhora em volta, e depois o barbeiro vindo na rua sacudir o lençol branco no
qual ele enrolava as pessoas quando repicava os cabelos.
Então um cavalo surgiu a galope e deu uma esbarrada, jogando
lama na gente. Porfírio apeou retinindo as esporas, adaga e Smith & Wesson
na cintura. Cuspindo marimbondos:
- Quem esse cabelo aparou o resto há
de cortar de graça e a navalha na cabeça passar.
O barbeiro quis dar pra trás, que isso era uma barbaridade
que ele não fazia e coisa e tal... Mas o desvairado marido puxou o laço e
amarrou a mulher na cadeira, até o pescoço, naquela esticadeira usada pra
encostar a cabeça de quem se barbeava. Meteu um balaço no espelho e fez as
mulheres correrem porta afora. A rua, a praça e até as casas ficaram desertas.
Janelas e portas fecharam-se. Ninguém queria ser testemunha da desavença
conjugal.
A jovem esposa, pálida, morta de medo e vergonha, tremia
crispando os dedos nas guardas da cadeira. Sendo tosquiada, presa como um
animal, o couro rústico do laço cortando-lhe a carne.
Sem pretender me quedei paralisado, assistindo a tragédia
daquela mulher, até que o bruto a jogou para fora e aplicou-lhe um chute na
barriga. Sozinha, humilhada, jogada na lama. Larguei a bicicleta e corri para
ampará-la. O bandido montou e ficou com o cavalo escarvando em volta de nós. Eu
gritei:
– Sai daqui seu covarde, deixa ela em paz.
O desgraçado baixou o relho nas minhas costas e se foi.
Então, por cima da ignomínia e da dor houve um
constrangimento louco, de raiva e de lástima. Erguendo a mão do barro gritou
buscando forças no âmago, clamando por justiça – tu vais pagar por isso seu maldito.
Segurou a minha mão e agradeceu me chamando de meu
mosqueteiro. E ironizando pra ela mesma repetiu – mosqueteiro da rainha destronada. E chorou sentidamente, a cabeça
no meu peito, os restos de espuma, o sangue dos cortes da navalha e as nossas
lágrimas escorrendo até o chão.
O meu coraçãozinho infantil nunca tinha sentido tanta
indignação. Acho que nem o dela. Era o nosso primeiro confronto com a
inexorabilidade da violência, da crueldade, da maldade dos homens. Fiquei
olhando calado para a mulher vilipendiada, magoada, ferida, como quem pede
perdão por não conseguir defendê-la. A chuva refrescando o vergão da chibata no
meu lombo.
De repente atinei pro
rangido de um carroção. Vinha lento abrindo sulcos na estrada, trazido por duas
juntas de bois de aspas grandes. Uma melopéia tão triste pelo ar
parecia um arquejante soluço. Um guri de cabelos cor de fogo com as
rédeas na mão, andando ao lado, os pés chapinhando no barro. Parou no meio da
rua. Quatro mulheres desceram, envolveram Dona Branca com cuidado, deitaram-na
num colchão sob o toldo arqueado, fecharam a tampa e prosseguiram na mesma
marcha para fora da vila, os badulaques de cobre retinindo baixinho nos lados.
Três dias depois o moleque das ciganas passou a galope e
jogou na porta da igreja caiada de branco, um pelego com um feto enrolado.
Escrito com sangue no couro, “Todo o mal recaia sobre Porfírio Corrêa”.
Furioso, o amaldiçoado juntou uma corja pra perseguir as ciganas, mas não
encontraram. Durante um ano enviou espias nas quatro direções do Pampa. Nada.
Tinham ganhado o mundo, e Dona Branca com elas.
Daí por diante a Vila definhou. Virou o lugarejo mais pobre
e atrasado de todo o Rio Grande. As
intempéries açodaram as pragas sobre a terra que nem no Egito faraônico pelas
mãos de Moisés. Temporais de granizo acabaram com as telhas e as plantações. A
enchente destruiu as ruas, a praça e a antiga igreja. Depois, seca, nuvens de
gafanhotos, carrapatos, mutucas. Os rebanhos finaram-se de fome e de moléstias.
Os jovens foram-se. Ninguém casou, nem nascimentos se registraram, somente
óbitos.
O pai pereceu de derrame no mesmo ano em que ela partiu.
Porfírio padeceu as agruras da perda dos rebanhos, incêndio na casa grande, o
abandono dos seus, o alcoolismo, a demência e por fim o tumor que o consumiu.
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Campanha
– região do Pampa no Estado do Rio Grande do Sul.
Orelhana
– gado ou reses sem marca.
Posteiros
– peões residentes nas divisas das estâncias.
Inolvidável
– muito incomum, memorável.
Sanga
– córrego, riacho.
Modorrento
– lugar quieto, sem movimento.
Smith
& Wesson – marca de revólver.
Melopéia
– cantilena, toada.
Boa tarde sou de camaquã-rs por acaso tu é parente do padre lellis um dos fundadores da igreja de são joão batista de camaquã ?
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