Não me tornei músico, entretanto sempre gostei de
música. Adoro cantar. Arranho as cordas de uma viola. Nos anos verdes curtia o
programa do Cascalho na rádio Continental e ouvia BeeGees, Beatles, Credence
Cleawater Revival, Bread, Light Reflexion, The Mamas and the Papas, Jovem
Guarda, IêIêIê, MPB, Tropicália e mais os sambas e boleros que eram tocados em
frente da minha casa na avenida Mariland. Sentia nas entranhas um
estremecimento quando ouvia os tambores, a batucada dos Acadêmicos da Orgia. E
tudo isso eu estou dizendo só para afirmar que tenho gosto eclético, mas sou
louco, mesmo, por música clássica, ou melhor, música erudita. E isso desde
pequenininho. Ia sozinho aos concertos da OSPA, ao Festival Internacional de
Coros de Porto Alegre, e até a ópera e balé.
E como a primeira a gente nunca esquece, vou contar
como foi a minha avant premiére no
balé. Fui levado pela tia Carminha para assistir O Lago dos Cisnes. Tinha meus
nove anos, era piá criado meio na estância e meio na cidade. Dessas crianças
brejeiras, de alma simples e curiosa, que hoje em dia nem se fabricam mais. E
já tinha essa mania de fazer comentários engraçados a respeito das coisas. Não
que quisesse fazer graça, mas pela expressão espontânea dos sentimentos, da admiração
pelo novo e pelo que é bonito - graças a Deus que esse guri ainda está comigo.
E lá estava o curumim, sentado na primeira fila do
Teatro São Pedro. Vestia fatiota e sapatos novos. Tudo branco. Viera de táxi,
daqueles antigos Oldsmobile pretos, com as amigas da tia Carminha, todas muito
empoadas e cobertas de brilhantes, camafeus, pérolas... E os perfumes! Como
estavam cheirosas aquelas senhoras! A memória olfativa é uma coisa de louco
mesmo, parece que me transporto imediatamente pr’aquele lugar, àquela cena se
aviva. O teatro e seus odores, e suas
luzes, e as gentes e as cores... Era puro deslumbramento.
Por
alegria do meu trabalho de viajante pude assistir a espetáculos em casas
famosas como o Scala de Milão, a Ópera de Dresden, a Ópera de Paris e o
Municipal do Rio de Janeiro. Estive em teatros chiques em Roma, Berlim e Viena.
Certa vez fui à Ópera de San Francisco, aquela onde a Júlia Roberts molhou a
calcinha no filme “Uma Linda Mulher”, mas vou dizer uma coisa - passo a vida a
comparar todos esses lindos teatros com o nosso São Pedro, e nenhum deles até
hoje me provocou tamanha emoção.
O que eu senti naquela noite foi incomparável. A
música de Tchaikovsky acariciava meus ouvidos como o vento da campanha, os
metais ecoavam no peito magricela de guri crestado de sol, os tímbalos provocavam
estremecimentos na barriga, e todo o corpinho franzino fremia. A luz se apagava
e atrás de mim nem parecia que estavam a plateia e as frisas lotadas. Eu
imaginava era o céu estrelado e a boca de cena era o trono de Deus, com os mais
lindos anjos homenageando o Criador.
A tia Carminha me preparara para o espetáculo. Sabendo
que eu nunca tinha visto uma peça dessas antes, ela me contou a história toda
para que eu percebesse nos números de dança o que é que estava acontecendo.
Assim eu acompanhei cada cena, e nos intervalos fazia comentários e mais
perguntas, que naquele tempo eu perguntava era muito, e as senhoras respondiam
admiradíssimas com esse interesse todo da parte de uma criaturinha vinda lá de
fora. E falavam – ai que pena que os meus netos não são assim! E outra – lá em
casa ninguém tem essa sensibilidade, olha como os olhos dele brilham!
Bom, cabe aqui dizer que dentre minhas acompanhantes
encontravam-se musicistas maravilhosas e algumas professoras do conservatório
estadual. Recebi muitas aulas e audições, herdei livros, partituras e discos.
Da ampla genialidade de Tchaikovsky elas trataram de me mostrar o divertido
criador de comédias e de músicas que fazem sonhar. Fui um adolescente meio
estranho, que conhecia a sinfonia número 1, “Sonhos de Inverno”, que me
transportava para uma Rússia idílica; a número 2, “Pequena Russa”, ótima pra
animar, deixar bem, pra cima; e a magnífica “polonaise”, a número 3, alegre,
bailante, um festival de sons... Também adorava a suíte número 3, que é quase
uma sinfonia e... Deixa que isto é outra história. Vou voltar pro teatro.
No último intervalo eu já estava mesmo como pinto no
lixo. Uma faceirice só. Então veio o gran
finale. De tão empolgado já não me continha mais e tocava junto com os
metais: tchaaan tchan tchan tchan tchan tchan...
tchaaan tchan tchan tchan
tchan tchan...
Era pra ser só um comentário comigo mesmo, levado pela
emoção. Sabe como é, num jogo de futebol, por exemplo, todo mundo fala e
ninguém liga, mas ali no teatro, minha fala caiu bem na pausa, bem naquele
silêncio que dá o clímax. E pensando alto comentei altíssimo, bem no tom da
orquestra:
- Deve ser
agora que o pato vai morrer!
Foi como um raio seco que percorreu o poço da
orquestra, bateu nos lustres, se espalhou pelas frisas e chegou até as coxias.
O maestro que já tinha reparado em mim, virou-se pra me olhar de canto de olho,
e rapidamente fez que sim com a cabeça, sem perder o compasso. Uma saraivada de
risadas ficou prestes a despencar, mas foi reprimida por alguns xxiiuu...
xxiiuu. Muita gente engoliu o riso, mas quando a primeira bailarina foi ao chão,
naquele gesto lânguido do último estertor do cisne, e tossiu tentando sufocar uma
risada, balançando o corpo todo, com a luz bem em cima, aí nem o maestro se
agüentou. Todo o teatro veio abaixo.
Deu na rádio Guaíba, na Gaúcha, na Farroupilha, e
ainda saiu no Correio do Povo a tal morte do pato!
OSPA – Orquestra
Sinfônica de Porto Alegre.
Estância – Propriedade
rural dedicada a criação extensiva de gado.
Conservatório
– Escola de música.
Piá, guri,
curumim – O mesmo que menino.
Fatiota – Traje social, terno.
Coxias – As partes internas do palco, bastidores.