Nessa época eu
trabalhava dia e noite pra pagar as promissórias do caminhão e ainda juntar um
dinheirinho pra casar. Preferia as cargas pela BR 116, pois sempre que passava
em Mafra podia dar um beijinho na Dorilda – a gente já tinha noivado!
Pois uma tarde
cheguei a Lajes, vindo de Curitiba, descarreguei e fui tomar banho e jantar no
antigo posto Lajeano. Um outro caminhoneiro me avisou que tinha uma carga em
Vacaria, pra puxar pra Curitiba, e me passou o número da transportadora.
Telefonei e me comprometi de carregar às seis da manhã. Nisso já era umas nove
da noite e eu, já de barriga cheia, de banho tomado e com o bruto abastecido,
me larguei pra estrada.
Noite borrascosa de
setembro, com garoinha molhando o
para-brisa. Se tudo desse certo antes da meia noite já estaria dormindo em frente
a transportadora de Vacaria; mas não, aquela noite ia ser bem mais longa.
A estrada era nova,
recém tinham feito o asfalto, e mal acabada, sem sinalização, especialmente
naquele trecho deserto entre o Rio Grande e Santa Catarina. A ponte da divisa,
sobre o Rio Pelotas, nem tinha sido inaugurada, que político não vai, assim no
mais, a lugar sem palanque, sem povo pra aplaudir os discursos. Essa que eu tô
falando é a ponte antiga, a primeira, que foi arrastada pela enchente. Hoje só
restam as cabeceiras, cravadas nas barrancas e alguns pilares na parte rasa do
rio. Era estreita, sem acostamento, e pra quem vinha do lado catarinense,
surgia meio que de repente, depois de uma curva e já descendo pro rio.
Eu já ia passar a
quarta quando me dei conta de um reflexo de luz vermelha e um clarão na garoa,
aí fui reduzindo, tentando entender o que era aquilo. Parei a uns vinte metros
da luz. Tinha um Sinca Chambord acidentado. Entrou com tudo na cabeceira da
ponte, num desnível grande do concreto para o asfalto. Ficou meio atravessado,
com a traseira pra baixo, jogando a luz de um farol pra cima. Do capô meio
aberto subia o vapor do radiador estourado.
Estacionei com as
luzes acesas, corri morro acima até a curva e vim arrancando umas touceiras de
capim e jogando na pista pra sinalizar, caso viesse outro motorista menos
atento. Depois ia ver o carro, mas na hora que olhei pra ponte vi um corpo
jogado. Pela posição parecia estar todo quebrado, com muito sangue no piso de
cimento da ponte. Meu deus, pensei eu, é uma mulher. A pessoa tinha sido arremessada para fora do
veículo.
Fiquei meio
desatinado, sem saber o que fazer até que fui no caminhão e peguei a lanterna
de pilhas pra vistoriar o interior do automóvel. Tinha um pelego caído na parte
de trás, na frente o painel quebrado ao meio, o soalho do carro levantado no
lado direito, um casaco de mulher.
Pensei que a dona
estava sozinha, e fui de novo ver o corpo. Parecia um boneco de Judas, os membros
de qualquer jeito, o cabelo longo meio embolado e desgrenhado, o sangue
brilhando com as gotinhas de garoa... aquilo me deu uma náusea.
Varri a pista em
volta com o facho de luz. De repente percebi um brinquedinho, um jipe de
plástico vermelho, tava lá no meio da estrada, com as rodinhas viradas pra
cima. – Meu Deus – Pensei – Tem uma criança aqui.
O menino tava na
parte de trás, debaixo do pelego, imprensado entre os bancos. O vidro da porta
de trás tinha se quebrado e a porta estava emperrada. Tentei alcançar pela
janela, mas o carro estava mal se equilibrando sobre o despenhadeiro.
Voltei ligeiro pro
caminhão e parei mais perto. Puxei o cabo de tração e amarrei no chassi do
Sinca. Dei a ré com o FNM e arrastei o carro mais pra cima, pra um lugar seguro
no acostamento.
Com um tirão
arranquei a porta e graças a Nosso Senhor, que me fez forte, consegui afastar
os bancos. O menino estava enrolado em um cobertorzinho. Decerto vinha
dormindo. Tirei com todo o cuidado e estendi sobre o pelego. Parecia que tava
vivo. Levei pra boleia e ajeitei na minha cama.
Agora eu tinha que
soltar o cabo e limpar a estrada. Essa parte foi mais difícil, eu confesso. Pra
atravessar a ponte precisava arredar o corpo. Vocês não calculam o quanto
sofri. Pensei que ia ter pesadelo com isso o resto da minha vida.
Limpei as mãos no
capim e aproveitei o pára-choque solto do carro para fazer uma proteção. Então
fiz o FNM dar tudo até o hospital de Vacaria. Parei na frente e saltei para o
ar frio da madrugada. O enfermeiro da portaria acordou com o rugido do motor e
os suspiros do freio e veio ver o que era. Disse pra deixar o menino na cama do
caminhão até o médico ver. Daí um tempinho o Doutor chegou enfiando uma japona
por cima do pijama. Subiu na boleia e examinou o guri. Desceu com ar
preocupado. Mandou acordar todo mundo, preparar uma injeção e dar um jeito de
imobilizar o piazito, antes de descer com ele do caminhão. Dava cinco da manhã
quando levaram pra dentro. Me pediram pra voltar às oito para preencher o
prontuário.
Voltei pro caminhão
sentindo o cansaço chegar. Abri a porta e vi a placa amassada que eu tinha
arrancado do pára-choque do Sinca, então me lembrei que precisava avisar a
Patrulha Rodoviária. O patrulheiro já estava mateando e vendo o meu estado
disse:
- Senta aí paisano,
toma um chimarrão e te esquenta que eu vou telefonar pra Lajes.
Depois foi escrevendo
a ocorrência e anotando os meus dados até me liberar provisoriamente:
- Tu vais ter que
ficar por aí mais um pouco até aparecer alguém da família pra se responsabilizar
pelo piá.
Liguei o caminhão e
tratei de encontrar a transportadora. Felizmente o dono já tinha chegado e eu
pude explicar a minha situação. Ele me disse:
- Rapaz, tu és um
herói. Não te preocupes que a carga é tua. Pode encostar no cais, e a hora que
te liberarem tu partes.
Passava das sete da
noite, quando o carro da Patrulha Rodoviária parou no posto, onde eu esperava
com o caminhão carregado. O policial me explicou que já tinham localizado os
parentes das vítimas e eu podia partir. Tinha dormido só uns cochilos durante o
dia, e me acordava sempre sobressaltado, mas decidi tocar até Lajes.
Segui devagar
remoendo os acontecidos desde a noite anterior. A garoa fina e fria formava
duas colunas no brilho dos faróis. O FNM com sobrepeso, como no mais das vezes,
roncava forte nos Campos do Alto da Serra, obedecendo as precisas engatadas de
quarta marcha sem o uso da embreagem. Eu tinha só vinte e quatro anos e já era
motorista experiente, dirigia com responsabilidade, sem jamais usar a banguela
naquela estrada traiçoeira. Na descida pro Vale do Rio Pelotas, o urro do motor
engrenado reverberava no paredão de pedra. Na cabine o ar esquentava, então, de
janela aberta, com o cotovelo pra fora, ia imaginando a vista do rio lá
embaixo, serpenteando entre as montanhas cobertas de florestas.
Pouco antes da ponte
tem uma espécie de praça com banheiros e água para os viajantes. Naquele tempo
não passava de um aglomerado de barracões abandonados, a moradia provisória dos
trabalhadores que tinham aberto a estrada e construído a ponte. Parei, como era
de lei, para refrescar o motor e as lonas de freio que esquentavam muito na
longa descida. Apeei com o martelo de madeira e bati os pneus. Depois, com a
toalha no pescoço, fui me aliviar, lavar a cara e beber água na bica.
Estava me sentindo
meio angustiado, achei que era por ter que passar pelo local da tragédia. A
lembrança me veio forte. Meti a cabeça debaixo da água gelada e bufei alto,
rompendo o silêncio da noite pra desanuviar.
Voltei pro caminhão
secando as melenas e batendo as botas no asfalto na frente dos faróis acesos.
Abri a porta e joguei a toalha pro banco com a cabeça baixa, procurando
encaixar o pé no estribo. Então escutei uma risadinha triste, meio
constrangida. Não é que a dona estava sentada ali e eu tinha jogado a toalha
molhada em cima dela? Fiquei embasbacado, com os olhos arregalados, sentindo um
calafrio na espinha. Muito sem jeito balbuciei:
- Me desculpe, Dona.
Eu não vi a senhora entrar.
- Eu é que peço
desculpas por invadir o seu caminhão – Disse ela com uma voz tristíssima - Será
que o senhor pode me levar até o outro lado da ponte?
Eu fiz que sim com a
cabeça, o coração batendo no peito que nem tambor. Dei o arranque e segui
forçando a máquina, só atinando de soltar o freio na entrada da ponte, me
atrapalhando todo na mudança das marchas.
Era ela, sim, o mesmo
cabelo negro que eu vira emplastado no asfalto estava penteado, a blusa com
bordados de flores que eu tinha visto encharcada de sangue, branquinha. Sentada com as mãos postas sobre a saia plissada,
a cabeça ereta, tinha a estampa de uma dama altiva.
No lado catarinense
ela disse:
- O senhor pode parar
aqui, por favor?
Eu parei. A dama
então se virou e me olhando bem nos olhos perguntou:
- O meu filho está
bem?
- Ele vai ficar bom,
Dona – eu assenti bem enfático.
Então ela pousou a
mão no meu braço e tirou o meu nervosismo, acalmou o coração e me deixou em
paz.
- Deus lhe
pague. Que Nosso Senhor Jesus Cristo
ilumine o seu caminho.
Dizendo isso ela
sumiu. É, evaporou-se bem diante dos meus olhos.
Ficou na cabina um
perfume suave, muito, muito bom, que eu nunca mais senti igual. E a toalha
sobre o banco, sequinha e perfeitamente dobrada.
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