domingo, 13 de janeiro de 2013

DR. DURVAL FARIAS



Não confio em médicos. Os meus amigos médicos que o digam. Sempre discuto com eles e quero saber, do problema, as causas e curas possíveis, dos remédios, a composição e os efeitos colaterais e tudo o mais. Se possível ainda busco a opinião de mais de um doutor. Nem sempre eles estão de acordo.
Para muitos o paciente é uma coisa, menos do que uma cobaia. Aplicam um remédio e nem querem saber dos resultados. Se a pessoa melhora não volta. Se não melhora vai a outro médico.
Não gosto de falar mal, mas lá em Camaquã estão dos piores exemplares dessa espécie: os mercantilistas. Botam o dinheiro acima do respeito ao ser humano e da dedicação e ética profissional. Nunca vi coisa igual, mesmo numa emergência querem cobrar primeiro a consulta para depois atender. Foi o caso do seu Necésio que foi levado para o hospital Getúlio Vargas asfixiando com um osso de galinha atravessado na garganta, e ficou sofrendo no corredor enquanto o dr. Monetário acertava o preço do atendimento, que aquilo o SUS não cobria, que ali não tinha emergência e não sei mais o quê. Quando o doutor falou que o atendimento, mais os remédios e a internação ficavam em quatrocentos contos, dona Isaltina, que é uma respeitável matrona de seus centos quilos pulou nos cascos e, de raiva, deu um safanão com tanta força nas costas do marido:
– Tá vendo no que dá a tua gula! - que o osso voou longe. Aí voltaram pra casa sem gastar um tostão, pra desgosto do doutor.
O pobre se depender de médico morre mesmo. São poucos os que olham pra pessoa com algum interesse. No geral fazem algumas perguntas e mandam fazer trocentos exames de laboratório, de sangue, de urina, de fezes, raios X, eletro, ultrasom, tomografia computadorizada, digitalizada, estereotipada, e queijo e marmelada, só pra dizer que a sua unha está encravada. Ganham ao valor da consulta, mais a comissão sobre cada exame e até sobre o valor do medicamento. Veja se algum receita um genérico? Não, tudo medicamento de marca. A gente se quiser, que peça na farmácia.
Nos tempos do Dr. Durval Farias lá em Jaguarão as coisas eram diferentes. Embora formado em medicina na respeitada universidade de Montevidéu, não passava receitas complicadas. Acreditava que as coisas simples tinham grande poder de cura. Também não era especialista em coisa nenhuma e fazia de tudo: cabeça, tronco e membros, cirurgia consulta e parto. Atendia em domicílio, na Santa casa e no hospital Espírita. Sempre muito prestativo e desinteressado de cobre, conhecia cada um com seus padecimentos.
          Sua alma era como a de um passarinho que ferido na asa, se recupera, mas nunca mais consegue voar. No seu caso o ferimento foi punhal de amor traído. Nos tempos da faculdade o acadêmico galanteador se quedou pela jovem esposa de um estancieiro uruguaio. Ela chegou a implorar que ele se afastasse, que o marido seria cruel. Tudo em vão. O Durval era inexperiente e estava cego de paixão, e nesses casos a tragédia vem a galope. A legítima defesa da honra determinou a morte da mulher sem que por isso o assassino fosse punido. O doutorando é que acabou indo preso por trinta dias para que esfriasse a cabeça e não procurasse vingança. Daí começou a beber. Viciou-se.  Quase que não termina o curso. Como era muito inteligente foi aprovado e ganhou o diploma, mas não conseguiu emprego.
Por esses tempos a mãe, viúva, que o sustentava enquanto estudava, veio a falecer. Então o doutorzinho se alistou como médico das forças revolucionárias do capitão Luiz Carlos Prestes lá no Alegrete.
Essa coluna guerrilheira dos tenentes percorreu quase vinte e cinco mil quilômetros travando combates e enfrentando feras e intempéries pelos sertões do Brasil.
O Dr. Durval ganhou fama e respeito dos seus camaradas, pois aliviava as dores, caprichava nas suturas, era bom com o bisturi. E nas vilas e cidades por onde passava a coluna sempre atendia aos necessitados. Naquela época não tinha saúde pública e médico no interior era tão comum quanto cavalo com chifre.
O episódio que eu mais gostava de ouvir o Dr. Durval contar era o de como tinha salvado a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião. Diz que em 1926 para escapar da perseguição das polícias da Paraíba e de Pernambuco, Lampião levou seu bando para o Ceará. Bem nessa época a coluna estava atravessando a região, e os políticos encarregados de combater a coluna propuseram a Virgulino que enfrentasse os revolucionários. Em troca lhe dariam dinheiro, armamentos, fardas, uma patente de capitão dos batalhões patrióticos e o perdão para os seus crimes, é claro. O portador da proposta foi nada menos do que o famoso Padre Cícero, vigário de Juazeiro do Norte. O cangaceiro era um homem religioso, como a maioria dos sertanejos, e aceitou de pronto a proposta. Partiu com seu bando à caça de Prestes, só que a coluna já andava lá pela Bahia.
          Quando Lampião cruzava o estado de Pernambuco descobriu que aquela patente de capitão não tinha valor legal. Foi atacado pela polícia Pernambucana e precisou bater em retirada. Mas as volantes se organizaram e vieram de tudo que é lado. Os cangaceiros se prepararam para o ataque na Serra Grande. Ficaram bem entrincheirados no meio das pedras e mandacarus. A bala comeu o dia inteiro. Morreu muita gente, dos dois lados. O próprio Lampião foi gravemente ferido num olho por estilhaços de chumbo e pedra.
A coluna Prestes já andava longe, uns trinta dias de marcha, mas o Dr. Durval tinha ficado num povoado próximo se recuperando de umas feridas nas pernas. Inclusive nesse povoado o doutor tinha salvado a vida de uma gestante e seu bebe. Foi assim: quando a coluna chegou viram um ajuntamento de mulheres fazendo rezas e ladainhas numa certa casa. Conforme a cantilena parava se ouvia os gritos de dor e o choro desesperado de uma mulher. Os soldados queriam ver o que que era, mas as velhas não permitiam. O Dr. Durval perguntou se poderia ajudar. Uma senhora falou - só se for um doutor da capital. Aí ele pediu licença, se lavou, pegou a maleta e se apresentou como médico. O que ele viu naquela casa nunca mais lhe saiu da memória: uma cabocla com uma barriga enorme, nua, pendurada num pau, amarrada como os ladrões na cruz. Por dias a parteira pelejava tentando virar a criança que insistia em ficar sentada. A pobre mulher já não tinha mais forças nem pra gritar. Dava só uns gemidos sentidos entre uma respiração e outra. O doutor não perdeu tempo. Mandou buscar uma garrafa de cachaça e mel. Os dois ajudantes dele até se entreolharam – será que ele vai tomar coragem pra operar a dona? Essa pelo jeito não escapa. Mas não bebeu. Encheu uma caneca, misturou com mel e foi dando de colher para a gestante. A cachaça logo fez efeito. O mel lhe devolveu as forças, que é pura energia. Foi relaxando, parou de gemer. Mandou soltar a corda e abaixar um pouco o pau em que ela estava pendurada. Besuntou a barriga com mel e tateando daqui e dali foi levando a criança a se virar. Depois de umas horas de trabalho, abaixou mais, fez a parturiente ficar de cócoras e aí já estava coroando. De noite teve festa no povoado, e a ladainha virou em louvação.

Assim é o povo do sertão, passa da tristeza para alegria como quem troca de roupa.
Entre aquela gente havia coiteiros de Lampião. Coiteiros eram os que acobertavam os cangaceiros quando as volantes vinham no seu encalço. Também tinham recebido bem a coluna revolucionária, não só porque não tinham como reagir, mas porque estavam do lado de quem combatesse o governo dos coronéis. Desde sempre aquele povo é muito oprimido.
       E logo pediram que o doutor fosse socorrer o bando que estava destroçado pela batalha da Serra Grande. Alguns dias de marcha e lombo de jumento e lá chegou com os seus dois ajudantes e foram logo armando um hospital de campanha.
Os cabras de Lampião estavam mesmo de um jeito medonho, muitos furados de bala, outros de arma branca, que a luta tinha chegado até ao corpo a corpo. Só no outro dia é que dona Maria Bonita convenceu o marido a ser atendido pelo doutor. – primeiro os meus cabras, dizia ele. Nestas alturas o buraco do olho já estava infeccionado, e cheio de cacos da lente dos óculos que se espatifou com os estilhaços. O doutor fez a limpeza com uma pinça. A anestesia foi cachaça, como de costume. Tirou um balde de pedra, chumbo e vidro. Depois fez uma cataplasma a base de farinha de macaxeira, palma do sertão e babosa.
          Pois não é que o Dr. Durval acabou salvando aquele que estava contratado para acabar com ele? Dona Maria Bonita lhe mostrou a carta patente de capitão. Aí o doutor Durval, que era primeiro tenente da coluna revolucionária, fez continência para Lampião e disse que pra ele aquela carta valia, que bravura e valentia é posto. Disse que ele usasse quatro estrelas no chapéu, pelo ferimento na cabeça que nem estava no escudo do General Osório outro guerreiro famoso, o “leão dos pampas”. Daí por diante Lampião, convencido pelo seu amigo doutor, passou a assinar Capitão Virgulino Ferreira da Silva.


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