Não confio em médicos. Os
meus amigos médicos que o digam. Sempre discuto com eles e quero saber, do
problema, as causas e curas possíveis, dos remédios, a composição e os efeitos
colaterais e tudo o mais. Se possível ainda busco a opinião de mais de um
doutor. Nem sempre eles estão de acordo.
Para muitos o paciente é uma
coisa, menos do que uma cobaia. Aplicam um remédio e nem querem saber dos
resultados. Se a pessoa melhora não volta. Se não melhora vai a outro médico.
Não gosto de falar mal, mas
lá em Camaquã estão dos piores exemplares dessa espécie: os mercantilistas.
Botam o dinheiro acima do respeito ao ser humano e da dedicação e ética
profissional. Nunca vi coisa igual, mesmo numa emergência querem cobrar
primeiro a consulta para depois atender. Foi o caso do seu Necésio que foi
levado para o hospital Getúlio Vargas asfixiando com um osso de galinha
atravessado na garganta, e ficou sofrendo no corredor enquanto o dr. Monetário
acertava o preço do atendimento, que aquilo o SUS não cobria, que ali não tinha
emergência e não sei mais o quê. Quando o doutor falou que o atendimento, mais os
remédios e a internação ficavam em quatrocentos contos, dona Isaltina, que é
uma respeitável matrona de seus centos quilos pulou nos cascos e, de raiva, deu
um safanão com tanta força nas costas do marido:
– Tá vendo no que dá a tua
gula! - que o osso voou longe. Aí voltaram pra casa sem gastar um tostão, pra
desgosto do doutor.
O pobre se depender de
médico morre mesmo. São poucos os que olham pra pessoa com algum interesse. No
geral fazem algumas perguntas e mandam fazer trocentos exames de laboratório,
de sangue, de urina, de fezes, raios X, eletro, ultrasom, tomografia
computadorizada, digitalizada, estereotipada, e queijo e marmelada, só pra dizer
que a sua unha está encravada. Ganham ao valor da consulta, mais a comissão
sobre cada exame e até sobre o valor do medicamento. Veja se algum receita um
genérico? Não, tudo medicamento de marca. A gente se quiser, que peça na
farmácia.
Nos tempos do Dr. Durval
Farias lá em Jaguarão as coisas eram diferentes. Embora formado em medicina na
respeitada universidade de Montevidéu, não passava receitas complicadas. Acreditava
que as coisas simples tinham grande poder de cura. Também não era especialista
em coisa nenhuma e fazia de tudo: cabeça, tronco e membros, cirurgia consulta e
parto. Atendia em domicílio, na Santa casa e no hospital Espírita. Sempre muito
prestativo e desinteressado de cobre, conhecia cada um com seus padecimentos.
Sua alma era como a de um passarinho
que ferido na asa, se recupera, mas nunca mais consegue voar. No seu caso o
ferimento foi punhal de amor traído. Nos tempos da faculdade o acadêmico
galanteador se quedou pela jovem esposa de um estancieiro uruguaio. Ela chegou
a implorar que ele se afastasse, que o marido seria cruel. Tudo em vão. O
Durval era inexperiente e estava cego de paixão, e nesses casos a tragédia vem
a galope. A legítima defesa da honra determinou a morte da mulher sem que por
isso o assassino fosse punido. O doutorando é que acabou indo preso por trinta
dias para que esfriasse a cabeça e não procurasse vingança. Daí começou a
beber. Viciou-se. Quase que não termina
o curso. Como era muito inteligente foi aprovado e ganhou o diploma, mas não
conseguiu emprego.
Por esses tempos a mãe,
viúva, que o sustentava enquanto estudava, veio a falecer. Então o doutorzinho
se alistou como médico das forças revolucionárias do capitão Luiz Carlos
Prestes lá no Alegrete.
Essa coluna guerrilheira dos
tenentes percorreu quase vinte e cinco mil quilômetros travando combates e
enfrentando feras e intempéries pelos sertões do Brasil.
O Dr. Durval ganhou fama e
respeito dos seus camaradas, pois aliviava as dores, caprichava nas suturas,
era bom com o bisturi. E nas vilas e cidades por onde passava a coluna sempre
atendia aos necessitados. Naquela época não tinha saúde pública e médico no
interior era tão comum quanto cavalo com chifre.
O episódio que eu mais
gostava de ouvir o Dr. Durval contar era o de como tinha salvado a vida do cangaceiro
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião. Diz que em 1926 para escapar da
perseguição das polícias da Paraíba e de Pernambuco, Lampião levou seu bando
para o Ceará. Bem nessa época a coluna estava atravessando a região, e os
políticos encarregados de combater a coluna propuseram a Virgulino que
enfrentasse os revolucionários. Em troca lhe dariam dinheiro, armamentos,
fardas, uma patente de capitão dos batalhões patrióticos e o perdão para os
seus crimes, é claro. O portador da proposta foi nada menos do que o famoso
Padre Cícero, vigário de Juazeiro do Norte. O cangaceiro era um homem
religioso, como a maioria dos sertanejos, e aceitou de pronto a proposta.
Partiu com seu bando à caça de Prestes, só que a coluna já andava lá pela
Bahia.
Quando Lampião cruzava o estado de
Pernambuco descobriu que aquela patente de capitão não tinha valor legal. Foi
atacado pela polícia Pernambucana e precisou bater em retirada. Mas as volantes
se organizaram e vieram de tudo que é lado. Os cangaceiros se prepararam para o
ataque na Serra Grande. Ficaram bem entrincheirados no meio das pedras e
mandacarus. A bala comeu o dia inteiro. Morreu muita gente, dos dois lados. O
próprio Lampião foi gravemente ferido num olho por estilhaços de chumbo e
pedra.
A coluna Prestes já andava
longe, uns trinta dias de marcha, mas o Dr. Durval tinha ficado num povoado
próximo se recuperando de umas feridas nas pernas. Inclusive nesse povoado o
doutor tinha salvado a vida de uma gestante e seu bebe. Foi assim: quando a
coluna chegou viram um ajuntamento de mulheres fazendo rezas e ladainhas numa
certa casa. Conforme a cantilena parava se ouvia os gritos de dor e o choro
desesperado de uma mulher. Os soldados queriam ver o que que era, mas as velhas
não permitiam. O Dr. Durval perguntou se poderia ajudar. Uma senhora falou - só
se for um doutor da capital. Aí ele pediu licença, se lavou, pegou a maleta e
se apresentou como médico. O que ele viu naquela casa nunca mais lhe saiu da
memória: uma cabocla com uma barriga enorme, nua, pendurada num pau, amarrada
como os ladrões na cruz. Por dias a parteira pelejava tentando virar a criança
que insistia em ficar sentada. A pobre mulher já não tinha mais forças nem pra
gritar. Dava só uns gemidos sentidos entre uma respiração e outra. O doutor não
perdeu tempo. Mandou buscar uma garrafa de cachaça e mel. Os dois ajudantes
dele até se entreolharam – será que ele vai tomar coragem pra operar a dona?
Essa pelo jeito não escapa. Mas não bebeu. Encheu uma caneca, misturou com mel
e foi dando de colher para a gestante. A cachaça logo fez efeito. O mel lhe
devolveu as forças, que é pura energia. Foi relaxando, parou de gemer. Mandou
soltar a corda e abaixar um pouco o pau em que ela estava pendurada. Besuntou a
barriga com mel e tateando daqui e dali foi levando a criança a se virar.
Depois de umas horas de trabalho, abaixou mais, fez a parturiente ficar de
cócoras e aí já estava coroando. De noite teve festa no povoado, e a ladainha
virou em louvação.
Assim é o povo do sertão,
passa da tristeza para alegria como quem troca de roupa.
Entre aquela gente havia coiteiros de Lampião.
Coiteiros eram os que acobertavam os cangaceiros quando as volantes vinham no
seu encalço. Também tinham recebido bem a coluna revolucionária, não só porque
não tinham como reagir, mas porque estavam do lado de quem combatesse o governo
dos coronéis. Desde sempre aquele povo é muito oprimido.
E logo
pediram que o doutor fosse socorrer o bando que estava destroçado pela batalha
da Serra Grande. Alguns dias de marcha e lombo de jumento e lá chegou com os
seus dois ajudantes e foram logo armando um hospital de campanha.
Os cabras de Lampião estavam
mesmo de um jeito medonho, muitos furados de bala, outros de arma branca, que a
luta tinha chegado até ao corpo a corpo. Só no outro dia é que dona Maria
Bonita convenceu o marido a ser atendido pelo doutor. – primeiro os meus
cabras, dizia ele. Nestas alturas o buraco do olho já estava infeccionado, e
cheio de cacos da lente dos óculos que se espatifou com os estilhaços. O doutor
fez a limpeza com uma pinça. A anestesia foi cachaça, como de costume. Tirou um
balde de pedra, chumbo e vidro. Depois fez uma cataplasma a base de farinha de
macaxeira, palma do sertão e babosa.
Pois não é que o Dr. Durval acabou
salvando aquele que estava contratado para acabar com ele? Dona Maria Bonita
lhe mostrou a carta patente de capitão. Aí o doutor Durval, que era primeiro
tenente da coluna revolucionária, fez continência para Lampião e disse que pra
ele aquela carta valia, que bravura e valentia é posto. Disse que ele usasse
quatro estrelas no chapéu, pelo ferimento na cabeça que nem estava no escudo do
General Osório outro guerreiro famoso, o “leão dos pampas”. Daí por diante
Lampião, convencido pelo seu amigo doutor, passou a assinar Capitão Virgulino Ferreira
da Silva.
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