domingo, 13 de janeiro de 2013

ANÁLIO




        Camaquã, 1963. Ano de seca, escassez, fome, intranquilidade política. Dois peões chegam à fazenda Capão Alto trazendo alguns bois magros. E dão notícias ao capataz: 
             - uma novilha com a marca da fazenda foi abatida. Ele montou rapidamente e se dirigiu para o sítio. Galopou em campo aberto, cruzou uma sanga num passo de bois, atravessou o capão de mata fechada, mais campo beirando um açude, contornou um banhado e alcançou a divisa da estância. Anoitecia quando chegou ao rancho. Alguns cachorros magros latiram e abanaram os rabos ao mesmo tempo. Meio brabos, meio envergonhados, meio desconfiados, meio alegres com a visita inesperada. O cavalo zaino, suado, ofegando. Algumas crianças espiaram na porta.
            - mãe, mããe, tem gente!
            - o seu pai está?
            - mãe, mããe, tem gente, repetiram as crianças, sem responder ao estranho. Três rostinhos negros, olhos enormes, curiosos.
A porta então se abriu toda e uma mulher alta e magra, com um pano branco na cabeça, atendeu.
            - Senhor deseja?
            - Falar com o dono da casa. Voz ríspida; cavalo impaciente com os relâmpagos e com os mosquitos.
            - O senhor quem é? Voz humilde, mas digna, na defensiva; as crianças segurando no vestido, as duas menores com o dedinho na boca.
Uma rajada de vento e pingos grossos de chuva espanta os mosquitos e parece dissipar um pouco da névoa da raiva e do preconceito que impedia os bons modos do campeiro.
            - Desculpe, dona. Boa Noite. Jovelino.
            - Apeie seu Jovelino. O Análio não está. Volta logo.
Jovelino apeou e um rapazinho saiu da casa, pegou as rédeas e levou o animal para um galpãozinho. A senhora convidou-o a entrar. Tirou o chapéu e abaixou um pouco a cabeça para cruzar a umbreira da porta. No meio da sala de chão batido havia uma bacia grande de alumínio, bem ariada, onde as crianças tinham sido lavadas. O rapazinho voltou e levou a água pra fora. Uma menina magrinha, de trancinhas bem feitas, chamou as três crianças menores para se vestirem.
            - O senhor desculpe não oferecer um mate, mas estamos sem erva, avisou a dona da casa, conduzindo o visitante para a cozinha e indicando um banco próximo ao fogão.
O visitante pigarreou meneando a cabeça, como se não desse importância. Sentou-se e sentiu um conforto nas pernas. O lampião de querosene teimava em apagar, soprado pelo vento que entrava pelas frestas, mas sua luz não fazia falta, pois os relâmpagos aumentaram tanto que pareciam a luz do dia a piscar. As labaredas cresceram no fogão de tijolos e barro, com chapa de duas bocas. Jovelino reparou que havia apenas uma panela fervendo o que parecia ser uma sopa.
O ribombar dos trovões fez as crianças menores se agarrarem na mãe. O rapazinho abraçou a irmã. Então o pensamento do rude capataz enterneceu-se por um instante, e pensou na sua própria família, como estariam sua mulher e filhos enfrentando a tempestade, sozinhos. Tentou confortar as crianças:
            - Quando a gente vê a luz, aí já passou o perigo. O barulho vem depois, e já não faz mal algum, só assusta.
Assim como veio, o temporal passou, restando a chuva benfazeja há tanto aguardada pela terra de fendas e bocas abertas. Jovelino pensou que já era tarde, e emendou pensando que já era tarde pra ter chovido, pois a seca já matara toda plantação, e mais que já era tarde pra resolver qualquer problema sobre uma rês. Sentiu-se desconfortável, invadindo a casa de um homem ausente, imiscuindo-se na sua cozinha, impondo-se às suas crianças. Fez menção de ir embora, mas a senhora pediu:
                        - Fique mais um pouco, por favor. Espere a chuva passar de todo.
E foi cobrindo a mesa, enquanto a menina pôs os velhos pratos alouçados. A mãe serviu a rala sopa de verduras, sem carne, sem gordura. Pra acompanhar, só um pouquinho de farinha de mandioca.
Jovelino envergonhou-se e foi enumerando os seus enganos, constatando a cada colherada de sopa que sorvia: os negros são limpos, os negros são educados, os negros são honestos. Pois claro, se o homem tivesse matado a vaca de propósito, seus filhos não estariam jantando esse pirãozinho ralo.
Passada a chuva, o capataz voltou para Capão Alto. Já passava de meia noite quando chegou. Encontrou uma carroça coberta com uma lona na frente do galpão. Levantou a cobertura e confirmou o que já suspeitava: lá estava toda a carcaça cortada em pedaços, inclusive a cabeça, as patas, os miúdos e o couro. Ao entrar no galpão viu o vizinho deitado em uns pelegos, dormindo profundamente, junto ao fogo de chão. – Dorme o sono dos justos, pensou. Quem não deve, não teme.
Na casa, a mulher vigiava. Abriu a porta e atirou-se nos seus braços. Abraçou e beijou muito o seu amado, pra compensar a preocupação pelo marido ausente, e o medo do temporal. Na cama conversaram sobre o ocorrido:
            - Foi só o moço chegar e o temporal desabou. Mal deu tempo de desatrelar os cavalos. Eu pedi pra ele entrar e me ajudar com aquela janela, que o vendaval não deixava fechar. Foi Deus quem mandou. As crianças choravam com medo das trovoadas, mas ele contou umas histórias e ficou com elas no colo, até que ficaram calminhas.
A novilha tinha se enredado na cerca, tentando um pasto mais alto do outro lado do banhado. Abriu uma veia no arame farpado.
            - Isso tem que ser gente muito boa. Outro não se daria o trabalho. Mesmo que ele viesse avisar, quando tu chegasses lá pra carnear, os graxains já teriam comido até o couro.
            - Pois é, a saída pela estrada é só pelo lado deles, e leva quase três horas pra chegar aqui.
De manhã cedo, o aroma delicioso extrapolava a cozinha, passeava pelo terreiro, excitava os cachorros campeiros. Seu Análio e os outros peões que chegavam para a lida foram convidados a comer bife de fígado passado na manteiga com farofa e café.
Depois salgaram parte da carne, dividiram a metade para a família do vizinho. O rincão renascia na manhã lavada. Debaixo da terra as sementes inchadas de umidade preparavam-se para eclodir assim que o sol esquentasse. Jovelino, Gertrude e seus três filhos churrasquearam na casa de Análio, Ana e seus cinco filhos. 




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