Camaquã, 1963. Ano de seca,
escassez, fome, intranquilidade política. Dois peões chegam à fazenda Capão
Alto trazendo alguns bois magros. E dão notícias ao capataz:
- uma novilha com
a marca da fazenda foi abatida. Ele montou rapidamente e se dirigiu
para o sítio. Galopou em campo aberto, cruzou uma sanga num passo de bois,
atravessou o capão de mata fechada, mais campo beirando um açude, contornou um
banhado e alcançou a divisa da estância. Anoitecia quando chegou ao rancho.
Alguns cachorros magros latiram e abanaram os rabos ao mesmo tempo. Meio
brabos, meio envergonhados, meio desconfiados, meio alegres com a visita
inesperada. O cavalo zaino, suado, ofegando. Algumas crianças espiaram na
porta.
-
mãe, mããe, tem gente!
-
o seu pai está?
-
mãe, mããe, tem gente, repetiram as crianças, sem responder ao estranho. Três
rostinhos negros, olhos enormes, curiosos.
A porta então se abriu toda e uma
mulher alta e magra, com um pano branco na cabeça, atendeu.
-
Senhor deseja?
-
Falar com o dono da casa. Voz ríspida; cavalo impaciente com os relâmpagos e
com os mosquitos.
-
O senhor quem é? Voz humilde, mas digna, na defensiva; as crianças segurando no
vestido, as duas menores com o dedinho na boca.
Uma rajada de vento e pingos
grossos de chuva espanta os mosquitos e parece dissipar um pouco da névoa da raiva
e do preconceito que impedia os bons modos do campeiro.
-
Desculpe, dona. Boa Noite. Jovelino.
-
Apeie seu Jovelino. O Análio não está. Volta logo.
Jovelino apeou e um rapazinho
saiu da casa, pegou as rédeas e levou o animal para um galpãozinho. A senhora
convidou-o a entrar. Tirou o chapéu e abaixou um pouco a cabeça para cruzar a
umbreira da porta. No meio da sala de chão batido havia uma bacia grande de
alumínio, bem ariada, onde as crianças tinham sido lavadas. O rapazinho voltou
e levou a água pra fora. Uma menina magrinha, de trancinhas bem feitas, chamou
as três crianças menores para se vestirem.
-
O senhor desculpe não oferecer um mate, mas estamos sem erva, avisou a dona da
casa, conduzindo o visitante para a cozinha e indicando um banco próximo ao
fogão.
O visitante pigarreou meneando a
cabeça, como se não desse importância. Sentou-se e sentiu um conforto nas
pernas. O lampião de querosene teimava em apagar, soprado pelo vento que
entrava pelas frestas, mas sua luz não fazia falta, pois os relâmpagos
aumentaram tanto que pareciam a luz do dia a piscar. As labaredas cresceram no
fogão de tijolos e barro, com chapa de duas bocas. Jovelino reparou que havia
apenas uma panela fervendo o que parecia ser uma sopa.
O ribombar dos trovões fez as
crianças menores se agarrarem na mãe. O rapazinho abraçou a irmã. Então o
pensamento do rude capataz enterneceu-se por um instante, e pensou na sua
própria família, como estariam sua mulher e filhos enfrentando a tempestade,
sozinhos. Tentou confortar as crianças:
-
Quando a gente vê a luz, aí já passou o perigo. O barulho vem depois, e já não
faz mal algum, só assusta.
Assim como veio, o temporal
passou, restando a chuva benfazeja há tanto aguardada pela terra de fendas e
bocas abertas. Jovelino pensou que já era tarde, e emendou pensando que já era
tarde pra ter chovido, pois a seca já matara toda plantação, e mais que já era
tarde pra resolver qualquer problema sobre uma rês. Sentiu-se desconfortável,
invadindo a casa de um homem ausente, imiscuindo-se na sua cozinha, impondo-se
às suas crianças. Fez menção de ir embora, mas a senhora pediu:
- Fique mais um pouco, por favor.
Espere a chuva passar de todo.
E foi cobrindo a mesa, enquanto a
menina pôs os velhos pratos alouçados. A mãe serviu a rala sopa de verduras,
sem carne, sem gordura. Pra acompanhar, só um pouquinho de farinha de mandioca.
Jovelino envergonhou-se e foi
enumerando os seus enganos, constatando a cada colherada de sopa que sorvia: os
negros são limpos, os negros são educados, os negros são honestos. Pois claro,
se o homem tivesse matado a vaca de propósito, seus filhos não estariam
jantando esse pirãozinho ralo.
Passada a chuva, o capataz voltou
para Capão Alto. Já passava de meia noite quando chegou. Encontrou uma carroça
coberta com uma lona na frente do galpão. Levantou a cobertura e confirmou o
que já suspeitava: lá estava toda a carcaça cortada em pedaços, inclusive a
cabeça, as patas, os miúdos e o couro. Ao entrar no galpão viu o vizinho
deitado em uns pelegos, dormindo profundamente, junto ao fogo de chão. – Dorme
o sono dos justos, pensou. Quem não deve, não teme.
Na casa, a mulher vigiava. Abriu
a porta e atirou-se nos seus braços. Abraçou e beijou muito o seu amado, pra
compensar a preocupação pelo marido ausente, e o medo do temporal. Na cama
conversaram sobre o ocorrido:
-
Foi só o moço chegar e o temporal desabou. Mal deu tempo de desatrelar os
cavalos. Eu pedi pra ele entrar e me ajudar com aquela janela, que o vendaval
não deixava fechar. Foi Deus quem mandou. As crianças choravam com medo das
trovoadas, mas ele contou umas histórias e ficou com elas no colo, até que ficaram
calminhas.
A novilha tinha se enredado na
cerca, tentando um pasto mais alto do outro lado do banhado. Abriu uma veia no
arame farpado.
-
Isso tem que ser gente muito boa. Outro não se daria o trabalho. Mesmo que ele
viesse avisar, quando tu chegasses lá pra carnear, os graxains já teriam comido
até o couro.
-
Pois é, a saída pela estrada é só pelo lado deles, e leva quase três horas pra
chegar aqui.
De manhã cedo, o aroma delicioso
extrapolava a cozinha, passeava pelo terreiro, excitava os cachorros campeiros.
Seu Análio e os outros peões que chegavam para a lida foram convidados a comer
bife de fígado passado na manteiga com farofa e café.
Depois salgaram parte da carne,
dividiram a metade para a família do vizinho. O rincão renascia na manhã
lavada. Debaixo da terra as sementes inchadas de umidade preparavam-se para
eclodir assim que o sol esquentasse. Jovelino, Gertrude e seus três filhos
churrasquearam na casa de Análio, Ana e seus cinco filhos.
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