Uma das ruas mais
movimentadas e mais cantadas do Brasil: a Avenida São João no centro de São
Paulo. Em Sampa, alguma coisa acontece
no coração do Caetano quando ele cruza a Ipiranga e a Avenida São João. Não sei
bem o que, acho que nem ele. Para o
Adoniran Barbosa o sentimento era mais palpável, afinal sua amada Iracema “travessou contramão e foi pinchada no chão” faltando quinze dias
para o casamento. Já o Paulo Vanzolini conclui a Ronda prometendo “cena de
sangue num bar da Avenida São João”.
Pois quando eu
ouço qualquer dessas músicas me vem logo a lembrança da primeira vez que
atravessei a São João. Foi meio que no desespero, mais ligeiro do que keniano na São Silvestre. Cheguei do
outro lado da rua com o coração saindo pela boca.
O episódio se deu
quando fui prestar vestibular pra faculdade de direito do Largo de São
Francisco. Bota tempo nisso, ainda garoava naquelas plagas! Minha mãe me
recomendara que rezasse a São Judas Tadeu e lá fui eu pro Jabaquara. A
recomendação, não se pode dizer que foi vã: até que eu consegui o meu anel. Na
volta peguei um ônibus pro centro – também nem existia metrô - e desci no Vale
do Anhangabaú. Pretendia conhecer o Mosteiro de São Bento, a Catedral da Sé, o
Teatro Municipal, enfim, estava fazendo um programa turístico, quando fui
abordado por um camarada, um mulato grande, a cara mais picada de bexiga do que
casca de melancia em galinheiro:
- Moço, o salto
do seu sapato está soltando, chegue aqui – nesse tempo também ninguém usava
tênis, só sapato de couro.
Eu, muito
educado, parei e dei atenção. Pra quê? Rápido como galinha pegando barata, o
sujeito enfiou um estilete e sacou o salto. E já sentou numa caixinha no canto
da calçada onde tinha uma bigorna de sapateiro. Como num passe de mágica me
mostrou dois saltos novinhos:
- Me dê o sapato
moço, faz favor, não demora nada.
Meio
desequilibrado, manco, no meio daquele povaréu apressado me pedindo – dá
licença, dá licença - me encostei na parede pra tirar o sapato, já percebendo
que tinha pisado num alçapão e a arapuca tinha desabado sobre mim. Pensei cá
comigo – e agora, será o Benedito?
Eu tinha que ter
me dado conta, pois afinal, em Porto Alegre também ficava uma súcia, em alguns
lugares, como embaixo do viaduto da Borges de Medeiros, arrancando os saltos
dos incautos e depois cobrando mais caro do que o par de sapatos pelo conserto,
no mais das vezes, desnecessário. E o turistão aqui, com jeito de caipira
deslumbrado, por certo, estava entregando o segundo pé, de um Vulcabrás quase novo,
para o meliante encher de pregos com um salto ordinário.
- Quatro contos o
conserto - falou o mulato, me entregando o outro pé de sapato. Não falei? Isso
era uma dinheirama para mim que andava areado, mais do que suficiente para
almoçar e pagar as passagens do dia. Ainda argumentei enquanto dava o tope:
- Não posso lhe
pagar tudo isso por um serviço que nem carecia.
A essa altura eu já tava me sentindo mais estranho do que
cebola em salada de frutas. Percebia a fumaça, o barulho, a feiúra, a hostilidade
da metrópole, e aquela droga de garoa... Nisso o pretenso sapateiro se levantou
e sentenciou apontando pros meus pés:
- Nesse caso
vamos ter que arrancar os saltos.
- Aí não! – Disse
eu, tossindo na farofa – o senhor já me arrebentou o único par de sapatos que
eu tinha fazendo esse serviço de porco.
E o calaveira pulou na minha frente com o estilete em riste.
Saltei de banda, segurei-lhe a mão, dei uma tironeada e rodopiei o velhaco
contra um poste. Nisso a cambada toda se alvorotou, que eram vários naquela
calçada a aplicar o golpe. Quando percebi o ajuntamento pra me cercar corri,
não de medo, que isso não entra em peito de gaúcho, mas pra evitar que me
sujassem a camisa. Desgarrei como raposa perseguida por galgos, esbarrando nuns
e me desviando de outros transeuntes. Quando me dei conta tava de frente
praquele mar de veículos e pensei – que São Cristóvão me proteja – Não iam me
palanquear assim no mais.
Sentindo o bafo do
perigo na nuca, atropelei São João adentro, passando na frente de um CTC
lotado, desviando das lambretas, pulando no capô de um e de outro automóvel,
varando entre os táxis, contornando um trólebus e finalmente transmontando a
papelama numa fila de burros-sem-rabo até o meio-fio. Nem sei como saí são e
salvo daquele entrevero – por certo foi São Jorge quem me tirou na garupa.
A corja vociferava do outro lado sem se atrever a cruzar.
Dei uma banana pra eles e tratei de sumir na multidão, que não ia ficar plantado
esperando o sinal fechar.
Apesar de salvar meu courinho - que sempre fui muito apegado
a ele - e de evitar as manchas na camisa, tive o prejuízo dos sapatos e dos
carpins, pois fiquei com os calcanhares furados pelas tachas mal pregadas que o
sem-vergonha tascou nos tacões.
Mas entrou foi santo nessa história, e eu nem terminei. É
que a Avenida São João já era conhecida da família por outra travessia
temerária. Vou arrematar com essa que
aconteceu com a tia Carminha, uns vinte anos antes da minha façanha.
Quando tio Zaia era vivo, muitas vezes precisava ir a São
Paulo, a serviço da Caixa. Como tinha o maior medo de avião – o alemão sofria
mais do que joelho de freira em semana santa - fazia questão da companhia da
esposa pra não dar vexame. E lá iam os dois, muito românticos, de mãos dadas,
do Salgado Filho a Congonhas. Ele suando muito e quase quebrando a mãozinha
dela, não desgrudava nem pra saborear o delicioso almoço que a Varig servia nos
bons tempos! Pra ele comida a bordo era que nem mocotó de ontem.
Enquanto o marido ia para as reuniões a tia aproveitava a
semana pra passear, fazer compras, visitar conhecidas. E como não tivesse senso
de direção, e jamais conseguisse se localizar, costumava se locomover só de táxi.
Ocorre que certa vez estava ela presa num engarrafamento, que isso São Paulo já
tinha, desde a fundação – a indiada já reclamava dos congestionamentos causados
pelas bandeiras quando partiam ou chegavam! - O chofer explicou, com aquele
jeito prático, característico dos paulistanos:
- Madame, o magazine que a senhora quer ir, o Mappin, é bem
ali na frente.
Então, diz a tia Carminha, que ela agradeceu, pagou e
desceu. Seguiu caminhando, olhando as vitrines, lendo os anúncios nos bondes,
reparando numa quantidade de coisas, gentes e placas, e foi se sentindo meio
aturdida com o movimento. Perguntou a um engraxate:
- Meu filho, faz favor, pra que lado é o Mappin?
E alguns minutos depois ela chegou a dita cuja avenida, que
naquela época tinha duas mãos, sem canteiro dividindo. O controle do tráfego
era feito por guardas de trânsito que ficavam no meio dos cruzamentos, sobre um
pedestal parecido com uma barrica, apitando e gesticulando, sinalizando para os
motoristas. Não havia faixas de pedestre. As pessoas atravessavam onde queriam.
Dona Carmem, parou no meio-fio, olhando ao longe, meio que
na ponta dos pés pra ver por cima dos veículos, assim que nem anão em comício,
quem sabe avistava o luminoso do Mappin. Nisso surgiu um senhor de óculos. Com
um sorriso tocou-a no braço e perguntou se podia atravessar a rua com ela.
- Ah, sim, muito obrigada. Vamos! – Disse ela, aceitando o
oferecimento cordial.
O cavalheiro segurou firme no seu braço e desceu para a rua
com um baque, dando-lhe um puxão. A titia pensou que era para se apressar, e
tentando ficar o mais junto dele possível, seguiu aos trancos e barrancos, nervosa,
mais parecia uma barata atravessando o galinheiro. Aí começou uma barulheira
infernal de buzinas e freadas, motores guinchando, o te-le-lém te-le-lém das
sinetas dos bondes e o rangido das rodas nos trilhos. Menos mal que nesse tempo
a educação ainda não tinha se deteriorado, e ninguém berrava – qué morrê ôôô...??? Nem ficava dizendo a
profissão das progenitoras alheias. A
pobrezinha se apavorou e fechou os olhos, apertando mais o braço do homem
contra o corpo. Chegou do outro lado lívida, com os cabelos arrepiados, as
pernas bambas, a boca seca.
- Virgem Santíssima, que trânsito enlouquecedor! – Disse ela
libertando a mão do homem do aperto no sovaco e alisando o suéter.
O coitado estava pior do que ela, branco de susto, com a boca
murcha que nem pastel de boteco. Tremendo balbuciou um muito obrigado, ajeitou os
óculos na cara e se afastou tenteando a calçada.
- Só então, diz a tia a Carminha, é que reparei na bengala!
CTC-
Cia de Transportes Coletivos de São Paulo
Tope –
o laço do sapato
Carpins – meias de homem
Carpins – meias de homem
Trólebus – ônibus elétrico
Vulcabrás – marca de sapatos famosa na
época
Calaveira – indivíduo vigarista, velhaco, caloteiro
Tironeada – tirão, puxão na rédea
Palanquear – prender, atar, amarrar
potro para domar
Entrevero – desordem, luta
corpo-a-corpo
Transmontando – passando por cima
Papelama – fardos de papelão recolhido
pelos catadores
Burro-sem-rabo – carrinho puxado por
homens
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