sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

AVENIDA SÃO JOÃO



            Uma das ruas mais movimentadas e mais cantadas do Brasil: a Avenida São João no centro de São Paulo. Em Sampa, alguma coisa acontece no coração do Caetano quando ele cruza a Ipiranga e a Avenida São João. Não sei bem o que, acho que nem ele.  Para o Adoniran Barbosa o sentimento era mais palpável, afinal sua amada Iracema “travessou contramão e foi pinchada no chão” faltando quinze dias para o casamento. Já o Paulo Vanzolini conclui a Ronda prometendo “cena de sangue num bar da Avenida São João”.
            Pois quando eu ouço qualquer dessas músicas me vem logo a lembrança da primeira vez que atravessei a São João. Foi meio que no desespero, mais ligeiro do que keniano na São Silvestre. Cheguei do outro lado da rua com o coração saindo pela boca.
            O episódio se deu quando fui prestar vestibular pra faculdade de direito do Largo de São Francisco. Bota tempo nisso, ainda garoava naquelas plagas! Minha mãe me recomendara que rezasse a São Judas Tadeu e lá fui eu pro Jabaquara. A recomendação, não se pode dizer que foi vã: até que eu consegui o meu anel. Na volta peguei um ônibus pro centro – também nem existia metrô - e desci no Vale do Anhangabaú. Pretendia conhecer o Mosteiro de São Bento, a Catedral da Sé, o Teatro Municipal, enfim, estava fazendo um programa turístico, quando fui abordado por um camarada, um mulato grande, a cara mais picada de bexiga do que casca de melancia em galinheiro:
            - Moço, o salto do seu sapato está soltando, chegue aqui – nesse tempo também ninguém usava tênis, só sapato de couro.
            Eu, muito educado, parei e dei atenção. Pra quê? Rápido como galinha pegando barata, o sujeito enfiou um estilete e sacou o salto. E já sentou numa caixinha no canto da calçada onde tinha uma bigorna de sapateiro. Como num passe de mágica me mostrou dois saltos novinhos:
            - Me dê o sapato moço, faz favor, não demora nada.
            Meio desequilibrado, manco, no meio daquele povaréu apressado me pedindo – dá licença, dá licença - me encostei na parede pra tirar o sapato, já percebendo que tinha pisado num alçapão e a arapuca tinha desabado sobre mim. Pensei cá comigo – e agora, será o Benedito?
            Eu tinha que ter me dado conta, pois afinal, em Porto Alegre também ficava uma súcia, em alguns lugares, como embaixo do viaduto da Borges de Medeiros, arrancando os saltos dos incautos e depois cobrando mais caro do que o par de sapatos pelo conserto, no mais das vezes, desnecessário. E o turistão aqui, com jeito de caipira deslumbrado, por certo, estava entregando o segundo pé, de um Vulcabrás quase novo, para o meliante encher de pregos com um salto ordinário.
            - Quatro contos o conserto - falou o mulato, me entregando o outro pé de sapato. Não falei? Isso era uma dinheirama para mim que andava areado, mais do que suficiente para almoçar e pagar as passagens do dia. Ainda argumentei enquanto dava o tope:
            - Não posso lhe pagar tudo isso por um serviço que nem carecia.
A essa altura eu já tava me sentindo mais estranho do que cebola em salada de frutas. Percebia a fumaça, o barulho, a feiúra, a hostilidade da metrópole, e aquela droga de garoa... Nisso o pretenso sapateiro se levantou e sentenciou apontando pros meus pés:
            - Nesse caso vamos ter que arrancar os saltos.
            - Aí não! – Disse eu, tossindo na farofa – o senhor já me arrebentou o único par de sapatos que eu tinha fazendo esse serviço de porco.
E o calaveira pulou na minha frente com o estilete em riste. Saltei de banda, segurei-lhe a mão, dei uma tironeada e rodopiei o velhaco contra um poste. Nisso a cambada toda se alvorotou, que eram vários naquela calçada a aplicar o golpe. Quando percebi o ajuntamento pra me cercar corri, não de medo, que isso não entra em peito de gaúcho, mas pra evitar que me sujassem a camisa. Desgarrei como raposa perseguida por galgos, esbarrando nuns e me desviando de outros transeuntes. Quando me dei conta tava de frente praquele mar de veículos e pensei – que São Cristóvão me proteja – Não iam me palanquear assim no mais.
 Sentindo o bafo do perigo na nuca, atropelei São João adentro, passando na frente de um CTC lotado, desviando das lambretas, pulando no capô de um e de outro automóvel, varando entre os táxis, contornando um trólebus e finalmente transmontando a papelama numa fila de burros-sem-rabo até o meio-fio. Nem sei como saí são e salvo daquele entrevero – por certo foi São Jorge quem me tirou na garupa.
A corja vociferava do outro lado sem se atrever a cruzar. Dei uma banana pra eles e tratei de sumir na multidão, que não ia ficar plantado esperando o sinal fechar.
Apesar de salvar meu courinho - que sempre fui muito apegado a ele - e de evitar as manchas na camisa, tive o prejuízo dos sapatos e dos carpins, pois fiquei com os calcanhares furados pelas tachas mal pregadas que o sem-vergonha tascou nos tacões.
Mas entrou foi santo nessa história, e eu nem terminei. É que a Avenida São João já era conhecida da família por outra travessia temerária.  Vou arrematar com essa que aconteceu com a tia Carminha, uns vinte anos antes da minha façanha.
Quando tio Zaia era vivo, muitas vezes precisava ir a São Paulo, a serviço da Caixa. Como tinha o maior medo de avião – o alemão sofria mais do que joelho de freira em semana santa - fazia questão da companhia da esposa pra não dar vexame. E lá iam os dois, muito românticos, de mãos dadas, do Salgado Filho a Congonhas. Ele suando muito e quase quebrando a mãozinha dela, não desgrudava nem pra saborear o delicioso almoço que a Varig servia nos bons tempos! Pra ele comida a bordo era que nem mocotó de ontem.
Enquanto o marido ia para as reuniões a tia aproveitava a semana pra passear, fazer compras, visitar conhecidas. E como não tivesse senso de direção, e jamais conseguisse se localizar, costumava se locomover só de táxi. Ocorre que certa vez estava ela presa num engarrafamento, que isso São Paulo já tinha, desde a fundação – a indiada já reclamava dos congestionamentos causados pelas bandeiras quando partiam ou chegavam! - O chofer explicou, com aquele jeito prático, característico dos paulistanos:
- Madame, o magazine que a senhora quer ir, o Mappin, é bem ali na frente.
Então, diz a tia Carminha, que ela agradeceu, pagou e desceu. Seguiu caminhando, olhando as vitrines, lendo os anúncios nos bondes, reparando numa quantidade de coisas, gentes e placas, e foi se sentindo meio aturdida com o movimento. Perguntou a um engraxate:
- Meu filho, faz favor, pra que lado é o Mappin?
E alguns minutos depois ela chegou a dita cuja avenida, que naquela época tinha duas mãos, sem canteiro dividindo. O controle do tráfego era feito por guardas de trânsito que ficavam no meio dos cruzamentos, sobre um pedestal parecido com uma barrica, apitando e gesticulando, sinalizando para os motoristas. Não havia faixas de pedestre. As pessoas atravessavam onde queriam.
Dona Carmem, parou no meio-fio, olhando ao longe, meio que na ponta dos pés pra ver por cima dos veículos, assim que nem anão em comício, quem sabe avistava o luminoso do Mappin. Nisso surgiu um senhor de óculos. Com um sorriso tocou-a no braço e perguntou se podia atravessar a rua com ela.
- Ah, sim, muito obrigada. Vamos! – Disse ela, aceitando o oferecimento cordial.
O cavalheiro segurou firme no seu braço e desceu para a rua com um baque, dando-lhe um puxão. A titia pensou que era para se apressar, e tentando ficar o mais junto dele possível, seguiu aos trancos e barrancos, nervosa, mais parecia uma barata atravessando o galinheiro. Aí começou uma barulheira infernal de buzinas e freadas, motores guinchando, o te-le-lém te-le-lém das sinetas dos bondes e o rangido das rodas nos trilhos. Menos mal que nesse tempo a educação ainda não tinha se deteriorado, e ninguém berrava – qué morrê ôôô...??? Nem ficava dizendo a profissão das progenitoras alheias.  A pobrezinha se apavorou e fechou os olhos, apertando mais o braço do homem contra o corpo. Chegou do outro lado lívida, com os cabelos arrepiados, as pernas bambas, a boca seca.
- Virgem Santíssima, que trânsito enlouquecedor! – Disse ela libertando a mão do homem do aperto no sovaco e alisando o suéter.
O coitado estava pior do que ela, branco de susto, com a boca murcha que nem pastel de boteco. Tremendo balbuciou um muito obrigado, ajeitou os óculos na cara e se afastou tenteando a calçada.
- Só então, diz a tia a Carminha, é que reparei na bengala!

CTC- Cia de Transportes Coletivos de São Paulo 
Tope – o laço do sapato
Carpins – meias de homem
Trólebus – ônibus elétrico
Vulcabrás – marca de sapatos famosa na época
Calaveira – indivíduo vigarista, velhaco, caloteiro
Tironeada – tirão, puxão na rédea
Palanquear – prender, atar, amarrar potro para domar


Entrevero – desordem, luta corpo-a-corpo
Transmontando – passando por cima
Papelama – fardos de papelão recolhido pelos catadores
Burro-sem-rabo – carrinho puxado por homens


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