Pois a tia Gláucia, que era irmã do meu avô, portanto, minha tia avó, tinha mais de 120 cachorros quando morreu, com noventa e picos de idade. Cachorros dos
grandes, dos médios e dos pequenos, dos de raça, puro sangue, e dos raçudos que
ela chamava de “tombas”. Lata. É claro!
O casarão, em Camaquã, onde ela
morava sozinha, se é que alguém pode estar só com tanto cachorro, era o paraíso
para qualquer cusco sarnoso, descadeirado ou mordido de cobra. O bicho podia
chegar com as costelas alumiando, com mais pulgas do que pelos, que em menos de
duas semanas já estava parecendo cachorro de grã-fino, engordando, cheiroso e escovado.
Depois era fácil arrumar colocação em alguma casa ou numa fazenda. Uns
paulistas que andavam comprando arroz em Camaquã levaram uns filhotes de
perdigueiro para as crianças, e teve até um casal de israelenses sem filhos que
adotaram um pequinês da tia Gláucia.
No dia da vacina antirrábica a
prefeitura punha um posto no casarão, e geralmente era o que vacinava mais. No
inverno o serviço dobrava, pois muito animal velho alcançava mais uma primavera
graças ao assistencialismo do casarão. A tia senhora contava com a ajuda
decidida de uma governanta, polaca, cega de um olho, mas excelente cozinheira,
que fazia as delícias da cachorrada. Tinha também uma faxineira tenaz que
perseguia as pulgas e pelos extraviados e banhava a matilha num banheiro
adaptado, com água quente, xampus, escovas e secadores.
A tia Gláucia supervisionava tudo com
a eficiência de uma chefe de enfermagem. Mas era mais do que enfermeira, pois
veterinário nunca tirou farinha com ela. Até cirurgia a tia fazia e dizia com
orgulho, que desde os 65, quando se especializou em cães, até os 86 anos,
quando teve glaucoma, nunca perdeu um paciente. Daí por diante, com a vista
deficiente, os casos cirúrgicos eram encaminhados a uma sobrinha neta, que por
acaso é minha irmã, e “doutora de cachorrinho”.
Já não me lembro se foi em 1974 ou 75
que li no Jornal do Brasil, uma daquelas notícias curiosas, de uma senhora que
queria legar a pensão da Guerra do Paraguai, que recebia por ser filha solteira
de combatente, aos cães, com a alegação de que eram seus filhos adotivos. Não
precisei nem ler tudo para perceber que se tratava da minha tia, dando um toque
de humor à sisuda jurisprudência brasileira.
Mas se a tia Gláucia foi sempre bem
humorada e amante de bichos, nem sempre se dedicou aos cães. Aliás, até 1950,
os cães eram enxotados do casarão que vivia infestado era de gatos.
A brusca mudança de gato pra cachorro,
para cachorro pra caramba se deu por causa de uma afilhada a quem faltaram os
pais.
Como boa católica, a tia Gláucia
cumpriu com o seu dever de madrinha e convidou a menina que já beirava os
dezessete, para morar no casarão -ia ser
bom, ela precisava de companhia, gostavam uma da outra, e de fato ia tudo muito
bem até que a moça começou a namorar.
O namoro era em casa como aconselhava
o decoro, mas o rapaz, não é que tivesse horror a bichos - era alérgico! No
começo ainda tentou segurar os espirros, esfregar o nariz... Ora, os gatos
viviam pela casa toda, mas é claro, tinham preferência pela sala com seus sofás
e poltronas, almofadas macias e uns pelegos grossos como tapetes no chão. O
moço não ficou nem cinco minutos e já arrumou uma desculpa e saiu espirrando
tanto que chegava a abanar o arvoredo.
A senhora que tinha reparado os
olhares de nojo que o pobre rapaz lançara aos bichanos, ainda comentou com a
afilhada que um bom pai se podia conhecer pelo tratamento que dispensava aos
bichinhos. E a menina, que era muito grata e estimava muito a dinda, não quis
contradizê-la. Sabia que aqueles gatos eram umas tetéias e a madrinha ficaria
magoada se ela falasse qualquer coisa. Quem sabe, um dia ela conheceria um bom
moço que gostasse muito de gatos...
Pois foi aí que a tia Gláucia recebeu
uma carta de uns parentes de Santa Vitória do Palmar que há muito insistiam que ela os visitasse. A dinda até que fazia
gosto pela viagem, mas se prendia pela criação. A afilhada então protestou:
- Imagine, pra ela serviria então?
Que a dindinha fosse sossegada, os bichanos seriam muito bem tratados.
E diante de tanta devoção aos gatos,
já demonstrada pela afilhada, a tia Gláucia se tranquilizou, e depois de uma
semana de preparativos, de instruções, recomendações e cuidados, partiu para o
veraneio em Santa Vitória.
A moça tratou de aproveitar a
oportunidade, e como cachola não lhe faltava, logo arquitetou um plano que,
esperava, iria convencer a madrinha a se livrar dos gatos, sem magoá-la.
Pra começar procurou nas suas coisas
um rebenque que guardava como lembrança do pai, que tinha pilchas de campeiro e
trançava couro como ninguém. Pois o tal rebenque do tipo rabo-de-tatu mais do
que uma peça era uma obra de arte e uma arma, com três tiras de couro cru
terminando com umas pelotinhas nas pontas, um argolão de prata pura no cabo e
uma presilha pra pendurar no pulso. Qualquer carroceiro sabe que com um
rabo-de-tatu bem aplicado até cavalo morto dispara.
Pois a menina armada com tal açoite
chegou à sala, onde os felinos se refestelavam,
rezou - Em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo - e sentou relhada
pra todo lado. Os gatos perderam o rumo e zuniram pra fora soltando fogo pelo
rabo. Teve um que passou por uma vidraça fechada que nem uma pedra. Outro se
embrenhou numa roseira espinhosa. Os mais pequenos subiram pelas cortinas
até o teto. Enquanto havia um gato
dentro de casa o couro comeu solto, acompanhado sempre do “Pai, Filho e
Espírito Santo”.
Pois não é que a ladina domou os
gatos? Quando a tia Gláucia voltou, dois meses mais tarde, os bichanos correram
todos para a sua protetora, que foi entrando no portão, distribuindo afagos e
umas iscas de fígado que tinha trazido de agrado. Foi uma festa. A tia chamava
todos pelos nomes e os bichinhos miavam em volta dela, a se esfregar nas
pernas, cheios de saudades. Mas, quando
entrou na sala, os bichanos, ressabiados, ficaram de fora. Não ousaram! A tia
notou e achou esquisito, mas foi entrando, vendo a casa bem limpinha, tudo
arrumado com capricho de moça prendada. A afilhada tinha enchido os vasos de
flores e estava na cozinha com muitos doces e pão fresquinho a sua espera.
E entre os “como vai”, "como
foi” e “como estão”, a dona Gláucia foi logo perguntando sobre os gatos, que
estavam lá fora, numa espécie de galinheiro que na verdade, era a morada que a
afilhada tinha providenciado. A guria fez uma cara séria, e com gravidade, fez
a madrinha perceber que havia uma coisa muito errada com os gatos.
A dona, saudosa, insistia com os bichanos que a muito custo,
relutando, se achegaram para ouvir o que se falava sobre eles.
Então a guria falou, fazendo uma
tremenda encenação, cheia de trejeitos, que esses animais, por mais meigos que
parecessem, tinham parte com o demônio, pois não podiam resistir a invocação da
Santíssima Trindade.
Ah! Mas a tia riu – Mas que bobagem
que tu estás me falando... Esses bichinhos?
Contudo, atendendo ao pedido da
afilhada, invocou a Trindade e ficou de
boca aberta com o que viu - os gatos voaram para fora trocando as orelhas.
Ainda na véspera tinham sido ensaiados a rabo-de-tatu e por isso não esperaram
pra ver. Foram logo subindo nas árvores, pulando a cerca e sumiram da vista.
O resultado foi que, como católica
praticante, se livrou definitivamente dos gatos, chamou o vigário que veio com
a bandeira do Divino e benzeu a casa toda. A jovem espertinha reatou o namoro
com o “alérgico” e logo casaram. Ambos insistiram com tia Gláucia para que
fosse viver com eles em Jaguarão, onde o rapaz tinha terras, que ele era de
família até bem de vida, mas a tia não aceitou - que já estava acostumada com
Camaquã, com a casa e as coisas dela. Tinha uns campos arrendados e a pensão de
guerra. Estava satisfeita. Abençoou os dois e foi levando a vidinha tranquila
de sempre até que deu comida pr’uma cadelinha prenhe...
Suas histórias são ótimas e o leitor permanece ligadão! Parabéns! Bj
ResponderExcluirVirginia