domingo, 13 de janeiro de 2013

TELÚRICO, O EDUCADOR



O Telúrico certa vez resolveu plantar acácias. Depois de plantadas as mudas era só esperar cinco anos para cortar as árvores. Não dava trabalho. Então resolveu arranjar um emprego na cidade.
Na prefeitura, havia um cargo que era difícil de preencher: o de inspetor de alunos. Não havia quem tivesse disposição pra enfrentar os adolescentes. A encarregada dos recursos humanos apresentou para a secretária de educação o currículo do candidato.
- Tem mais de cinquenta anos, nível de instrução fundamental, experiência profissional só com as lidas do campo. Não tem perfil para o cargo.
- Querida - disse a senhora secretária de educação, professora das antigas, muito experiente - hoje nem se pode fazer nada contra os indisciplinados, pois o ECA não permite. Assim a gurizada inferniza nas escolas e pouco aprende. Os professores andam loucos da vida, cada dia amaldiçoando mais a profissão. Adoecem, faltam, tiram licenças, se demitem. Os diretores também se vão de mal a pior, sem moral nenhuma, não podem dar castigo, não podem suspender, não podem expulsar, nem transferir os problemáticos. E tome depredação, pichação, destruição do material escolar e desperdício dos recursos públicos e dos talentos que não se podem educar por causa da indisciplina.
A jovem recrutadora, recém formada em psicologia, pensando na complexidade do cargo de educador e já planejando uma capacitação geral, teve então uma aula da “raposa velha”:
- A faculdade da vida não dá diploma, mas também prepara. Por outro lado, a necessidade é a mãe da invenção, e quem não tem cão, cace como gato. Por tudo isso lhe digo: contrate o candidato.
Pois o Telúrico, achou bom trabalhar só meio expediente e meio sem perceber na enrascada que estava se enfiando, aceitou o emprego. Foi designado para a Escola Municipal Sete de Setembro, bem no centro de Camaquã. Ia ser uma beleza, trabalho de meio expediente, com carteira assinada, refeições, vale transporte. E agora, com a estrada da Chuvisca asfaltada o trajeto de ônibus do sítio até a cidade não chegava à meia hora. Dava tempo de tirar o leite das vacas de madrugada e ainda voltar para tratar da criação de tarde.

O diretor era o seu Carlinhos, professor de matemática readaptado em função extraclasse por deficiência visual. Baixinho, usava óculos fundo de garrafa, e mesmo assim só conseguia ver as coisas a um palmo do nariz. Tinha os cabelos e barbas precocemente embranquecidos o que lhe valia o apelido de “corujinha”. Todavia não se deixava enrolar pelos malevas e acompanhava todas as atividades escolares muito de perto.  
Recebeu o agricultor cordialmente, pois precisava desesperadamente de alguém para ocupar o cargo e tirar das suas costas as funções que ele mesmo vinha executando, com prejuízo para o trabalho administrativo e pedagógico, a saber: abrir e fechar os portões, controlar a entrada e a saída dos alunos, recolher e carimbar a presença nas cadernetas, acompanhar o movimento no refeitório, nos banheiros, nos corredores e nos pátios, atender solicitações dos professores e mais o que fosse preciso, especialmente cuidar para que os alunos não fizessem bagunça nos corredores, não matassem aula, e nem uns aos outros, não depredassem o patrimônio da escola...
Foram andando pelas dependências conversando e como o novo inspetor concordava enfaticamente, com empolgação crescente, o diretor foi adquirindo o tom professoral e como se falasse a um colega passou a expor as mazelas do ensino:
- As salas de aula são superlotadas, com até quarenta e cinco alunos por classe. Para essa clientela diversificada, se tem que ensinar o conteúdo das disciplinas Matemática, Português, História, Geografia, Ciências, Inglês, Espanhol, Artes, Educação Física e mais os conteúdos transversais cidadania, valores, educação sexual, higiene, saúde, ética, pluralidade cultural. O professor também tem que funcionar como psicólogo, assistente social, orientador educacional e orientador pedagógico, e desempenhar bem todos os deveres da família que a sociedade resolveu transferir para a escola.
- Eu não compreendo bem - disse o Telúrico - pois não acompanhei a evolução do ensino...
- Evolução não, involução, seu Telúrico.  A verdade é que o educador deixou de ser modelo para os jovens: ganhamos mal, nos vestimos mal e somos alvo constante da crítica social. Hoje, modelo para os jovens, são os milionários jogadores de futebol, as reboladoras, pagodeiros e outros mais que prefiro nem dizer.
Nesse instante, o sinal tocou e a conversa tornou-se impossível, pois enquanto os professores trocavam de turma, a piazada aproveitava pra falar, todos ao mesmo tempo e num volume altissíssimo.
Feitas as apresentações de sala em sala, foi seu Telúrico cuidar das cadernetas. Os alunos sem aula cercando a mesa dele e explicando como fazer:
- Ó tio, tem que carimbar presente bem no quadradinho.
Difícil, aquelas mãos enormes, calejadas pelos anos de trabalho duro na enxada, não acertavam. Então eles mesmos faziam, num instante. O tio Telúrico, supervisionando, a cada dia escolhia os ajudantes que disputavam o privilégio de ajudá-lo.
Concluída a carimbação arrebanhava os desgarrados e organizava uma pelada, um jogo de queimado, campeonato de elástico, futebol de meninas e outras diversões no pátio, o que permitia um bom rendimento aos professores pelo silêncio nos corredores.
O prédio e as instalações da escola há muito não recebiam reformas e a feiúra imperava. Um dia o Telúrico veio de carro, o seu Volkswagen, que lá em Camaquã chamam de “fuca”. Em cima, amarrado no bagageiro, um saco com ferramentas. Logo se pôs a cavar junto aos muros e a preparar canteiros. Os piás queriam participar e pronto, lá estavam, tirando a camisa, suando, naquela alegria saudável de trabalhar a terra. Depois veio estrume e a explicação sobre o adubo orgânico – vulgo “bosta-de-vaca”. Mudas de flores, de árvores, de frutíferas, foram chegando. Os meninos traziam, plantavam, regavam, davam nomes.
O Telúrico foi na loja de tintas:
- Me veja uma lata de tinta e corantes.
- Pois não, seu Telúrico. Pra que finalidade? - Perguntou o lojista.
- Pra fazer uns desenhos no muro do colégio.
- Nesse caso leve estas latas que estão com a validade vencida.
- Quanto é?
- Nada não, seu Telúrico. E quando precisar pode buscar mais.
- O que a gente vai pintar no muro, tio? - Perguntavam ansiosos os meninos.
- Bueno, vocês me preparem trabalhos das matérias que estão aprendendo, e depois a gente passa pro muro.
Alguns dos que nunca pegavam na caneta fizeram pesquisas e projetaram mensagens com muito conteúdo. Ficou uma beleza!
As mães se queixavam dos uniformes sujos, manchados de terra e de tinta. No portão o inspetor as atendia e justificava:
- Pois o uniforme é mesmo pra isso, dona, pra poder trabalhar, sem estragar a roupa do aluno. O governo dá de graça, se a senhora precisar, eu arrumo outra muda.
Já o professorado se dividia em elogios e em desancar. Havia os que enxergavam a melhoria do ambiente de trabalho e os que achavam o cúmulo o inspetor delegar serviços aos jovens, e jogar bola com os desocupados – imagine que o seu Telúrico tava jogando bola na hora do trabalho, dizia uma, - e no time sem camisa! Aumentava outra.
O diretor não dava ouvido, e defendia:
- Os guris ficam ali se divertindo sem perturbar. Não estudam, mas também não atrapalham os que querem aprender.
Quando soube que a maioria dos seus ajudantes só tirava notas vermelhas seu Telúrico fez uma reunião:
- Tão me prejudicando. Posso até ser mandado embora.
Os meninos ficaram consternados. Todos se achegaram para ouvir.
O Telúrico abanou a cabeça meditando e lascou:
- A burrice cola na gente que nem sujeira.
- Mas tio, o senhor não é burro! Argumentou uma das pimentinhas.
- Imagina, minha filha, que tu estas doente, vais ao médico e ele te passa um remédio. Tu não tomas o medicamento, não faz a tua parte e aí a tua mãe culpa o doutor por que tu não melhoras.
- Ihh, tio, tão querendo culpar o senhor pelas nossas notas ruins?
- Pois não tão? Disse ele mostrando as palmas das mãos com ar desolado.
- Mas não pode, é uma injustiça, vamos fazer um abaixo-assinado e...
O inspetor Telúrico pegou os boletins e sacudiu no ar, mostrando-os com uma careta. Foi comentando as notas de cada um e dizendo que o doente ia morrer se não tomasse o remédio.
 Os jovens estavam tomando consciência do resultado das suas ações. De maneira prática, perceberam que ninguém vive só para si. Adotaram resoluções sobre o que iriam fazer pra melhorar: assistir as aulas, fazer a lição de casa, estudar, empenhar-se, dedicar-se. Enfim, fazer sua parte!
O inspetor Telúrico foi se firmando como educador e ganhando o respeito da comunidade escolar, entretanto a sua consagração foi quando ele resolveu o problema do batom no espelho.
É que as meninas do sexto ano pegaram a mania de beijar o espelho pra tirar o excesso de batom. O professor Carlinhos, estressado com tantos relatórios, prestações de conta, estatísticas e quadros disto e daquilo que tinha que preencher, ainda se aborrecia porque a dona Arrozina, todo dia se queixava que tinha um trabalho enorme para limpar o espelho, e no outro dia lá estavam as mesmas boquinhas de batom. Juntou o bando de meninas no banheiro, passou uma descompostura - que elas parassem com isso, que ficava feio, que gastava detergente, que dava trabalho, que a escola era delas, que a conscientização, que a cidadania e por aí foi. No dia seguinte lá veio a servente falar que o espelho estava todo marcado de novo.
Já pelas tamancas, o diretor chamou o inspetor:
- Me mande advertência pra essas meninas, avise os responsáveis, arranque o espelho do banheiro, e tá proibido o uso de batom no colégio.
O Telúrico voltou pra sua mesa pensativo - às vezes precisamos usar métodos diferentes para alcançar certos resultados. Foi procurar a encarregada da limpeza e expôs um plano.
Chamou as gurias do sexto ano no banheiro, e pediu a servente para demonstrar como todos os dias ela limpava o espelho. Dona Arrozina, bem instruída, prontamente pegou um pano, molhou no vaso sanitário e esfregou toda a superfície de vidro.
Nem marca de mão se viu mais no espelho!

Acácia – árvore de cuja casca se extrai tanino, utilizado para curtir couros.
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente



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