O Telúrico certa vez resolveu plantar
acácias. Depois de plantadas as mudas era só esperar cinco anos para cortar as
árvores. Não dava trabalho. Então resolveu arranjar um emprego na cidade.
Na prefeitura, havia um cargo que era
difícil de preencher: o de inspetor de alunos. Não havia quem tivesse
disposição pra enfrentar os adolescentes. A encarregada dos recursos humanos apresentou
para a secretária de educação o currículo do candidato.
- Tem mais de cinquenta anos, nível de
instrução fundamental, experiência profissional só com as lidas do campo. Não
tem perfil para o cargo.
- Querida - disse a senhora secretária de
educação, professora das antigas, muito experiente - hoje nem se pode fazer
nada contra os indisciplinados, pois o ECA não permite. Assim a gurizada
inferniza nas escolas e pouco aprende. Os professores andam loucos da vida,
cada dia amaldiçoando mais a profissão. Adoecem, faltam, tiram licenças, se
demitem. Os diretores também se vão de mal a pior, sem moral nenhuma, não podem
dar castigo, não podem suspender, não podem expulsar, nem transferir os
problemáticos. E tome depredação, pichação, destruição do material escolar e
desperdício dos recursos públicos e dos talentos que não se podem educar por
causa da indisciplina.
A jovem recrutadora, recém formada em
psicologia, pensando na complexidade do cargo de educador e já planejando uma
capacitação geral, teve então uma aula da “raposa velha”:
- A faculdade da vida não dá diploma, mas
também prepara. Por outro lado, a necessidade é a mãe da invenção, e quem não
tem cão, cace como gato. Por tudo isso lhe digo: contrate o candidato.
Pois o Telúrico, achou bom trabalhar só
meio expediente e meio sem perceber na enrascada que estava se enfiando,
aceitou o emprego. Foi designado para a Escola Municipal Sete de Setembro, bem
no centro de Camaquã. Ia ser uma beleza, trabalho de meio expediente, com
carteira assinada, refeições, vale transporte. E agora, com a estrada da
Chuvisca asfaltada o trajeto de ônibus do sítio até a cidade não chegava à meia
hora. Dava tempo de tirar o leite das vacas de madrugada e ainda voltar para
tratar da criação de tarde.
O diretor era o seu Carlinhos, professor
de matemática readaptado em função extraclasse por deficiência visual. Baixinho,
usava óculos fundo de garrafa, e mesmo assim só conseguia ver as coisas a um
palmo do nariz. Tinha os cabelos e barbas precocemente embranquecidos o que lhe
valia o apelido de “corujinha”. Todavia não se deixava enrolar pelos malevas e
acompanhava todas as atividades escolares muito de perto.
Recebeu o agricultor cordialmente, pois
precisava desesperadamente de alguém para ocupar o cargo e tirar das suas
costas as funções que ele mesmo vinha executando, com prejuízo para o trabalho
administrativo e pedagógico, a saber: abrir e fechar os portões, controlar a
entrada e a saída dos alunos, recolher e carimbar a presença nas cadernetas,
acompanhar o movimento no refeitório, nos banheiros, nos corredores e nos
pátios, atender solicitações dos professores e mais o que fosse preciso,
especialmente cuidar para que os alunos não fizessem bagunça nos corredores,
não matassem aula, e nem uns aos outros,
não depredassem o patrimônio da escola...
Foram andando pelas dependências
conversando e como o novo inspetor concordava enfaticamente, com empolgação
crescente, o diretor foi adquirindo o tom professoral e como se falasse a um
colega passou a expor as mazelas do ensino:
- As salas de aula são superlotadas, com
até quarenta e cinco alunos por classe. Para essa clientela diversificada, se tem
que ensinar o conteúdo das disciplinas Matemática, Português, História,
Geografia, Ciências, Inglês, Espanhol, Artes, Educação Física e mais os
conteúdos transversais cidadania, valores, educação sexual, higiene, saúde,
ética, pluralidade cultural. O professor também tem que funcionar como
psicólogo, assistente social, orientador educacional e orientador pedagógico, e
desempenhar bem todos os deveres da família que a sociedade resolveu transferir
para a escola.
- Eu não compreendo bem - disse o Telúrico
- pois não acompanhei a evolução do ensino...
- Evolução não, involução, seu
Telúrico. A verdade é que o educador
deixou de ser modelo para os jovens: ganhamos mal, nos vestimos mal e somos
alvo constante da crítica social. Hoje, modelo para os jovens, são os
milionários jogadores de futebol, as reboladoras, pagodeiros e outros mais que
prefiro nem dizer.
Nesse instante, o sinal tocou e a conversa tornou-se impossível, pois
enquanto os professores trocavam de turma, a piazada aproveitava pra falar,
todos ao mesmo tempo e num volume altissíssimo.
Feitas as apresentações de sala em sala, foi seu Telúrico cuidar das
cadernetas. Os alunos sem aula cercando a mesa dele e explicando como fazer:
- Ó tio, tem que carimbar presente bem no quadradinho.
Difícil, aquelas mãos enormes, calejadas pelos anos de trabalho duro na
enxada, não acertavam. Então eles mesmos faziam, num instante. O tio Telúrico,
supervisionando, a cada dia escolhia os ajudantes que disputavam o privilégio
de ajudá-lo.
Concluída a carimbação arrebanhava os desgarrados e organizava uma
pelada, um jogo de queimado, campeonato de elástico, futebol de meninas e
outras diversões no pátio, o que permitia um bom rendimento aos professores
pelo silêncio nos corredores.
O prédio e as instalações da escola há muito não recebiam reformas e a
feiúra imperava. Um dia o Telúrico veio de carro, o seu Volkswagen, que lá em
Camaquã chamam de “fuca”. Em cima, amarrado no bagageiro, um saco com
ferramentas. Logo se pôs a cavar junto aos muros e a preparar canteiros. Os piás
queriam participar e pronto, lá estavam, tirando a camisa, suando, naquela
alegria saudável de trabalhar a terra. Depois veio estrume e a explicação sobre
o adubo orgânico – vulgo “bosta-de-vaca”. Mudas de flores, de árvores, de
frutíferas, foram chegando. Os meninos traziam, plantavam, regavam, davam
nomes.
O Telúrico foi na loja de tintas:
- Me veja uma lata de tinta e corantes.
- Pois não, seu Telúrico. Pra que finalidade? - Perguntou o lojista.
- Pra fazer uns desenhos no muro do colégio.
- Nesse caso leve estas latas que estão com a validade vencida.
- Quanto é?
- Nada não, seu Telúrico. E quando precisar pode buscar mais.
- O que a gente vai pintar no muro, tio? - Perguntavam ansiosos os
meninos.
- Bueno, vocês me preparem trabalhos das matérias que estão aprendendo,
e depois a gente passa pro muro.
Alguns dos que nunca pegavam na caneta fizeram pesquisas e projetaram
mensagens com muito conteúdo. Ficou uma beleza!
As mães se queixavam dos uniformes sujos, manchados de terra e de tinta.
No portão o inspetor as atendia e justificava:
- Pois o uniforme é mesmo pra isso, dona, pra poder trabalhar, sem
estragar a roupa do aluno. O governo dá de graça, se a senhora precisar, eu
arrumo outra muda.
Já o professorado se dividia em elogios e em desancar. Havia os que
enxergavam a melhoria do ambiente de trabalho e os que achavam o cúmulo o
inspetor delegar serviços aos jovens, e jogar bola com os desocupados – imagine
que o seu Telúrico tava jogando bola na hora do trabalho, dizia uma, - e no time
sem camisa! Aumentava outra.
O diretor não dava ouvido, e defendia:
- Os guris ficam ali
se divertindo sem perturbar. Não estudam, mas também não atrapalham os que
querem aprender.
Quando soube que a maioria dos seus
ajudantes só tirava notas vermelhas seu Telúrico fez uma reunião:
- Tão me prejudicando. Posso até ser
mandado embora.
Os meninos ficaram consternados. Todos se
achegaram para ouvir.
O Telúrico abanou a cabeça meditando e
lascou:
- A burrice cola na gente que nem
sujeira.
- Mas tio, o senhor não é burro!
Argumentou uma das pimentinhas.
- Imagina, minha filha, que tu estas
doente, vais ao médico e ele te passa um remédio. Tu não tomas o medicamento,
não faz a tua parte e aí a tua mãe culpa o doutor por que tu não melhoras.
- Ihh, tio, tão querendo culpar o senhor
pelas nossas notas ruins?
- Pois não tão? Disse ele mostrando as
palmas das mãos com ar desolado.
- Mas não pode, é uma injustiça, vamos
fazer um abaixo-assinado e...
O inspetor Telúrico pegou os boletins e
sacudiu no ar, mostrando-os com uma careta. Foi comentando as notas de cada um
e dizendo que o doente ia morrer se não tomasse o remédio.
Os
jovens estavam tomando consciência do resultado das suas ações. De maneira
prática, perceberam que ninguém vive só para si. Adotaram resoluções sobre o
que iriam fazer pra melhorar: assistir as aulas, fazer a lição de casa, estudar,
empenhar-se, dedicar-se. Enfim, fazer sua parte!
O inspetor Telúrico foi se firmando como
educador e ganhando o respeito da comunidade escolar, entretanto a sua consagração
foi quando ele resolveu o problema do batom no espelho.
É que as meninas do sexto ano pegaram a
mania de beijar o espelho pra tirar o excesso de batom. O professor Carlinhos,
estressado com tantos relatórios, prestações de conta, estatísticas e quadros
disto e daquilo que tinha que preencher, ainda se aborrecia porque a dona
Arrozina, todo dia se queixava que tinha um trabalho enorme para limpar o
espelho, e no outro dia lá estavam as mesmas boquinhas de batom. Juntou o bando de meninas no
banheiro, passou uma descompostura - que elas parassem com isso, que ficava
feio, que gastava detergente, que dava trabalho, que a escola era delas, que a
conscientização, que a cidadania e por aí foi. No dia seguinte lá veio a
servente falar que o espelho estava todo marcado de novo.
Já pelas tamancas, o diretor chamou o
inspetor:
- Me mande advertência pra essas meninas,
avise os responsáveis, arranque o espelho do banheiro, e tá proibido o uso de
batom no colégio.
O Telúrico voltou pra sua mesa pensativo
- às vezes precisamos usar métodos
diferentes para alcançar certos resultados. Foi procurar a encarregada da
limpeza e expôs um plano.
Chamou as gurias do sexto ano no
banheiro, e pediu a servente para demonstrar como todos os dias ela limpava o
espelho. Dona Arrozina, bem instruída, prontamente pegou um pano, molhou no
vaso sanitário e esfregou toda a superfície de vidro.
Nem
marca de mão se viu mais no espelho!
Acácia – árvore de cuja casca se extrai tanino, utilizado
para curtir couros.
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